Nenhuma palavra. Apenas olhares de julgamento, nojo, repulsa, negação e dó.
“Isso é o mais dolorido para quem tem vitiligo”, disse Maika Celi, de 43 anos, ativista e mentora da primeira lei de conscientização sobre o vitiligo no Brasil. Ela contou à BBC News Brasil que a maior parte dos relatos de quem a procura é sobre a rejeição das outras pessoas por conta da doença.
Em resposta a esse julgamento silencioso, quem descobre ter vitiligo costuma usar maquiagem, calça comprida, camiseta de manga longa e luvas. Independentemente da temperatura ou ambiente onde estão, numa tentativa contínua de esconder o próprio corpo.
Nas redes sociais, surgiram piadas sobre a doença, mas ao mesmo tempo surgiu um exército para defender as pessoas com vitiligo. Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia, dados oficiais apontam que o vitiligo atinge cerca de 1% da população mundial e aproximadamente 1 milhão de pessoas no Brasil.
Especialistas consultados pela reportagem afirmaram que, além de não ser transmissível, o vitiligo reduz a chance de a pessoa ter câncer de pele. O principal contraponto é tornar a área sem as células de melanina, atacadas pelo próprio corpo, mais sensível ao sol.
Depois que um colega de trabalho fez uma piada nas redes sociais sobre o vitiligo de Maika Celi, em 2016, a ativista disse ter se sentido muito magoada, mas usou o Facebook para fazer um desabafo e responder à agressão.
“Veio uma força maior e um sentimento de que ninguém mais me humilharia por conta do vitiligo. Até então, eu sempre me colocava como vítima, mas mudei para protagonista. Eu não imaginava que a publicação fosse alcançar tantas pessoas. Foi quando iniciei o projeto ‘Meu lugar ao Sol’, com uma página para compartilhar minhas experiências e de outras pessoas com vitiligo”, conta.
O alcance das publicações cresceu repentinamente. Maika foi chamada para dar entrevista na TV e, em pouco tempo, passou a receber mensagens de pessoas dizendo ter sido inspiradas a aceitar e a deixar de sentir vergonha por ter a doença.
“Eu recebi até a mensagem de uma mulher com vitiligo que nunca tinha usado um short perto do filho. Ela usou uma saia, como gesto para presentear o filho dela no dia do aniversário dele, depois de ler meus depoimentos. Aquilo foi libertador. Ela disse: ‘Maika, por favor, eu te peço, não pare’, afirmou.
A ativista disse que trabalha para que o processo de aceitação de outras pessoas em relação à doença seja “mais leve” e para que elas não passem por momentos de tristeza profunda devido à falta de informação e de conscientização.
Ela conta que ficava muito abalada com comentários e “olhares de julgamento” por conta do vitiligo dela. Mas hoje diz que o principal motivo de seu bem-estar é estar segura de si mesma.
“A pessoa deve entender que, quando ela está bem com suas imperfeições, ninguém tem o poder de desequilibrá-la ou humilhá-la. É um trabalho de autoconfiança e autoconhecimento que traz essa segurança e não permite que ela se abale com qualquer conceito”, disse.
Ela se vê como uma referência para pessoas que descobrem a doença e não sabem lidar com o preconceito, estão à procura de informações ou querem apenas ouvir alguém com mais experiência.
“Não é sendo arrogante, mas muitas pessoas me procuram. Uma seguidora disse que entrou num restaurante e uma pessoa ficou olhando para as manchas dela. Ela pensou: ‘O que a Maika faria? Empinaria o nariz, encararia a pessoa e daria um sorriso’, me contou”.
Surgimento das manchas
Em entrevista à BBC News Brasil, o dermatologista especialista em vitiligo, Paulo Luzio, disse que é necessário ter uma genética para desenvolver a doença, aliada a um grande estresse.
“A pessoa pode ter a genética e passar a vida inteira sem que a doença se manifeste. Para ela entrar em atividade, é necessário um fator ambiental: o estresse. Ela é uma doença 100% ligada ao emocional e, na maioria dos casos, você tem uma história clara do que desencadeou”, afirmou.
No caso da Maika, a doença foi desencadeada após um acidente de moto que ela sofreu aos 22 anos. Após lesionar algumas partes do corpo, ela percebeu que as feridas pareciam não voltar à cor anterior e outras manchas surgiram.
Depois de procurar especialistas, Maika disse que ouviu o diagnóstico de maneira depreciativa por uma médica. “Nossa, que pena, você tem vitiligo”, conta a ativista.
Maika diz ainda que não aceitava a pele dela assim que descobriu a doença. Evitava frequentar lugares onde poderia expor sua pele, como praia, parques e churrascos.
“Quando surgiu no meu rosto, eu me maquiava demais. Só usava calça e blusa de manga longa, mesmo no calor de 40ºC. As pessoas perguntavam se eu estava bem e eu dizia que sim, mas por dentro eu estava assando”, lembrou.
O modelo Roger Monte, de 38 anos, disse que tem vitiligo desde os 23, quando a doença se manifestou a partir de um furo que ele tinha no queixo e se agravou por conta de um estresse causado pelo término de um relacionamento. Mas, só aos 35 anos ele passou a aceitar as mudanças no corpo e, aos poucos, passou a ser procurado para ser fotografado.
“Até então, eu não frequentava a praia porque ficava com medo da maquiagem que eu passava derreter e as pessoas verem minha pele. Passei mais de 10 anos me escondendo, fazendo tatuagens grandes apenas para esconder manchas no corpo. Hoje, quanto mais eu mostro, melhor”, afirmou em entrevista à BBC News Brasil.
Tanto Maika Celi quanto Roger Monte, citaram Winnie Harlow, modelo canadense com vitiligo, como referência de pessoa com autoconfiança e auto aceitação. Quebrando paradigmas, a modelo se tornou uma figura conhecida mundialmente e já acumula 9,3 milhões de seguidores no Instagram.
“No Brasil, nunca tive uma referência dessa, então, quero ser a referência e a ajuda que eu não tive”, afirmou o modelo Roger Monte.
“Como eu costumo dizer, as coisas mudaram quando eu comecei a mudar a forma como eu me olhava. O julgamento das pessoas e a maneira que elas se afastavam de mim, me doíam e eu levava para o coração. Uma vez, um senhor na estação do metrô me disse que o irmão dele tomou sangue de tatu para curar a doença. Em outra situação, uma mulher no ônibus falou que eu tinha que tratar porque o vitiligo poderia me matar. Depois que ela desceu, eu senti todo mundo me olhando e fiquei de cabeça baixa. Aquilo nunca saiu da minha memória. Hoje, como acho minha pele linda, quando sinto alguém me olhando assim ou querendo me passar receitas, apenas ignoro”, disse Roger Monte.
Visibilidade no BBB
Os entrevistados pela reportagem da BBC disseram que a presença da Natália Deodato no Big Brother estimula o debate sobre o vitiligo e quebra paradigmas sobre o assunto. Maika disse que essa presença inaugura uma nova fase da história do vitiligo no Brasil.
“A escolha dela foi mais uma quebra de paradigmas no que diz respeito a padrões na nossa sociedade. Quando fui ao supermercado, a moça do caixa me falou: você viu que no BBB tem uma pessoa igual você? Isso pra mim foi uma vitória”, afirmou.
Para ela, a visibilidade e o estímulo ao debate causado pela presença da Natália no BBB serão essenciais para ajudar principalmente a derrubar antigos mitos, como o de que o vitiligo é contagioso.
Por outro lado, o dermatologista Paulo Luzio afirma que também é importante esclarecer que a afirmação da Natália de que o vitiligo pode “evoluir” para o albinismo é incorreta.
“São genéticas e doenças diferentes. No albinismo, você tem as células de pigmento em número normal, mas elas não funcionam, de maneira simplificada. No vitiligo, há células, mas elas vão morrendo pelo sistema imunológico. Quando ela atinge mais de 70% do corpo, é chamada de vitiligo universal, mas não é albinismo”, afirmou.
O médico, membro da Global Vitiligo Foundation e que, há 16 anos, trata apenas casos da doença, disse ainda que o albinismo aumenta a chance de o paciente ter câncer de pele, enquanto o vitiligo diminui.
“O vitiligo tem a proteína P53, que corrige danos no DNA e que diminui a chance de ter um câncer. Por outro lado, as manchas do vitiligo queimam mais facilmente e podem dar bolhas, o que exige que a pele esteja sempre com protetor solar”, afirmou.
O especialista explica ainda que ter a genética do vitiligo não significa que ela se manifestará no paciente. Segundo ele, o fato de alguém na família ter vitiligo aumenta as chances em torno de 30%.
O médico afirma que alguns tratamentos com laser, uso constante de protetor solar e outros cremes ajudam a diminuir as manchas causadas pelo vitiligo, mas que a doença não causa nenhum problema de saúde.
“O tratamento é uma opção, mas a autoaceitação é o mais importante. Temos que nos aceitar como a gente é. Cerca de 20% dos pacientes reclamam de coceira no local da mancha, especialmente quando elas estão surgindo. Depois, é basicamente tomar cuidado para não queimar no sol”, afirmou.
Entre os mitos e simpatias usados para tentar curar a vitiligo, o médico disse já ter ouvido dezenas de relatos diferentes. Entre eles, está o uso de chás e produtos de origem animal, como tomar sangue de tatu e cágado cru.
“Eu atendi uma paciente que era uma criança e que tomou, instruída pelos responsáveis, um copo de fígado de boi cru batido com caju durante anos. A crença deles era de que isso diminuiria as manchas”, contou o médico.
Ele disse que a medicina avançou e hoje há diversos tratamentos e medicamentos disponíveis para quem deseja reduzir as manchas. Há remédios de uso oral, utópico, fototerapia, injeções e até mesmo transplante de melanócito.
Para a ativista Maika Celi, há quatro pilares principais que devem ser considerados por quem tem vitiligo: aceitação, amor próprio, conscientização e permitir-se.
“Eu levanto isso como assunto principal. Sempre digo quantas oportunidades perdi por não me permitir. Se a Natália está no BBB, é porque se permitiu. Ainda tem outro fator como mulher preta. imagine o tabu que ela precisou quebrar”.
Segundo o dermatologista Paulo Luzio, uma das limitações para o tratamento do vitiligo é ter poucos profissionais qualificados para avaliar e tratá-lo. Ele menciona que os americanos são fortes em realizar pesquisas, mas têm poucos pacientes para tratar.
Em congressos americanos que promovem encontros com especialistas em dermatologia, contou à reportagem, comparecem apenas cerca de 30 dedicados ao vitiligo e, geralmente, são sempre os mesmos.
“Hoje, em livros de dermatologia com 3.500 páginas, por exemplo, apenas 3 páginas são dedicadas ao vitiligo, e não falam coisa com coisa. É decepcionante. É como se fosse menos importante”, afirma o dermatologista.
Lei de conscientização ao vitiligo
Em 2018, Maika Celi entrou em contato com a Câmara de Vereadores de Piracicaba, cidade onde ela vive no interior paulista, para relatar que estava sentindo falta de uma lei municipal que tratasse sobre o vitiligo.
“Eles acharam interessante e, em 2019, foi criada a Lei Municipal de Conscientização do Vitiligo, lembrada sempre no dia 25 de junho, o Dia Mundial de Conscientização do Vitiligo. Depois dessa iniciativa, outros municípios sentiram a necessidade de levar essa ideia e já foram aprovadas leis semelhantes em Saltinho e Santa Bárbara d’Oeste”, contou.
Ela disse que a aprovação da lei ajuda na promoção de eventos, rodas de conversa, palestras e exposição de fotos em áreas públicas e escolas, por exemplo. Agora, a intenção de Maika é pressionar os órgãos públicos para que seja fornecido filtro solar pelo sistema público de saúde às pessoas com vitiligo.
Fonte: msn.com