Enquanto o Rio Grande do Sul vive a sua pior tragédia climática da história, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado pretende votar uma proposta que incentiva e abre caminho para novos desmatamentos na Amazônia, bioma essencial para conter os impactos dos extremos climáticos.
O projeto de lei |(PL) 3334 prevê reduzir de 80% para 50% a cota de reserva de imóveis rurais localizados na Amazônia Legal.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, essa eventual redução pode representar um desmatamento potencial de pelo menos 281.661 km² — o equivalente a todo o território do Tocantins.
O projeto estava inicialmente na pauta da Comissão nesta quarta-feira (08/05), mas de acordo com o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), a discussão foi adiada porque o relator estava de licença médica. A expectativa é que o tema seja retomado semana que vem.
O projeto faz parte do que ambientalistas apelidaram de “pacote da destruição” – 25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que ameaçam direitos socioambientais e agravam a emergência climática.
Essas medidas visam flexibilizar regras sobre temas como licenciamento ambiental, direitos indígenas, mineração, recursos hídricos e financiamento da política ambiental. Segundo relatório da ONG Observatório do Clima, o pacote tem potencial de causar “dano irreversível aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão”.
Protagonismo da bancada gaúcha
Parlamentares do Rio Grande do Sul estão na dianteira de algumas dessas propostas – três são de autoria de políticos do estado, que também ocupam outras funções estratégicas, como relatoria de projetos.
Um deles é o PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais – proposto pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS). No fim de março, o projeto foi aprovado na CCJ da Câmara, com o relatório favorável do também deputado gaúcho Lucas Redecker (PSDB-RS).
“Esse projeto representa um impacto gravíssimo para toda a biodiversidade em áreas tão sensíveis e que poderiam estar preservadas, inclusive nessas regiões de encostas, de morros, que são propensas a situações de enchente e de deslizamento”, explica Clarissa Presotti, especialista em políticas públicas da ONG ambiental WWF.
Questionado sobre o projeto, Redecker afirmou que o texto “se aplica exclusivamente a áreas antropizadas (previamente consolidadas pela ação humana antes de 2008), visando regularizar as atividades ambientais em propriedades rurais, especialmente a proteção de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e reserva legal”.
Já o PL 1282/2019, apresentado pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), autoriza obras de irrigação em áreas de preservação permanente, o que, segundo o Observatório do Clima, potencializaria a crise hídrica e o conflito pela água no Brasil. O texto foi aprovado no fim de 2023 no Senado e agora está na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) na Câmara, aguardando parecer do relator Afonso Hamm (PP-RS). Segundo Heinze, a mudança na legislação trará ganhos de produtividade na agricultura, sem a necessidade de expandir a área plantada.
Com autoria do deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), o PL 10273/2018 esvazia a taxa de controle e fiscalização ambiental e o poder do Ibama. Seu texto foi aprovado em abril na CCJ da Câmara. De acordo com Goergen, o projeto é necessário “a fim de evitar e superar divergências” ao atribuir a proteção do meio ambiente também para estados e municípios.
Críticos apontam que esses projetos também estão tramitando sem transparência.
“A população do Rio Grande do Sul está desesperada, e uma parte desse desespero é causada pela ação dessas pessoas”, afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. Ele destaca que nunca houve um volume tão grande de medidas nocivas para o meio ambiente como na atual legislatura, que avançam com muita velocidade.
“O Congresso sequer faz audiências públicas para tentar avaliar a opinião de especialistas sobre aquilo que ele mesmo está propondo. A consequência do que é proposto hoje pelo Congresso na área ambiental, o que aquilo vai causar no país, simplesmente não interessa mais para os legisladores, sobretudo para esse combo que há no Congresso da extrema direita com ruralistas contra a agenda ambiental”, avalia Astrini.
Desmantelamento do planejamento ambiental do RS
Na esfera estadual, também há críticas sobre o desmonte de políticas públicas para a área ambiental. Semanas antes dos temporais que inundaram o Rio Grande do Sul, o governo gaúcho sancionou uma lei que permite desmatar Áreas de Preservação Permanente (APPs) para construção de barragens.
“Flexibilizaram leis para aumentar áreas de plantio de soja, desmontaram planos diretores para ampliar a especulação imobiliária em zona ribeirinhas, para implantar minas de carvão e para favorecer a especulação imobiliária”, afirmou em artigo o geólogo Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em 2019, o já governador Eduardo Leite (PSDB) cortou ou alterou mais de 400 pontos do Código Ambiental do estado, com o objetivo de flexibilizar as exigências ambientais, concedendo, em alguns casos, a possibilidade de autolicenciamento. À época, o governo estadual afirmou que o novo código resultaria num “melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico” e que as mudanças eram uma “modernização”.
Segundo Menegat, há um uso intensivo do solo no estado para monocultura, sobretudo da soja, e uma desestruturação dos planos diretores nas cidades, favorecendo a especulação imobiliária, como a construção de espigões nas margens do lago Guaíba.
Houve ainda um desmonte da própria infraestrutura do estado, o que resultou em falhas nos sistemas de proteção contra inundação em Porto Alegre, com rupturas de diques e casas de bombas que não funcionaram.
Fonte: dw.com