No último debate da campanha presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tentou abordar temas sociais e apostar mais uma vez na nostalgia pelo seu antigo governo, enquanto seu adversário, Jair Bolsonaro (PL) focou em ataques e em itens que costumam mobilizar sua base radical.
Ao longo de duas horas e meia nesta sexta-feira (28/10), Lula tentou sistematicamente mostrar uma contraste em relação a Bolsonaro em temas como política externa, meio ambiente, armas de fogo e políticas sociais, mencionando problemas do país, como fome e desemprego – embora sem especificar muitas propostas.
No entanto, diante da tática ofensiva de Bolsonaro, que mais uma vez tentou associá-lo falsamente a temas como “drogas” e “ideologia de gênero”, Lula também recorreu a críticas e ataques. No terceiro bloco, Lula chegou a tentar encurralar o presidente no tema do aborto, num raro episódio em que o candidato do PT tentou explorar a agenda de costumes a seu favor.
Apenas nos dez primeiros minutos do embate, Lula e Bolsonaro chamaram um ao outro de “mentiroso” mais de dez vezes. Bolsonaro mencionou escândalos como o Mensalão e o Petrolão, enquanto Lula lembrou as acusações de desvio de salários de assessores e compra de dezenas de apartamentos em dinheiro vivo que pairam sobre o clã Bolsonaro.
Em desvantagem nas pesquisas, o presidente de extrema direita também chamou Lula de “bandido”. Já Lula explorou o recente ataque protagonizado pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), atual aliado do governo Bolsonaro, que no último domingo disparou mais de 50 tiros e chegou a atirar granadas contra agentes da Polícia Federal.
Apesar de estar há quase quatro anos no poder e contar com uma blindagem proporcionada por uma atuação apagada da Procuradoria-geral da República (PGR), que evitou investigar escândalos do governo, além de contar com um Congresso dócil, Bolsonaro tentou reciclar a imagem de “outsider” que usou na campanha de 2018. “O sistema todo está contra mim”, disse Bolsonaro ainda no primeiro bloco.
Lula chegou ao último debate liderando as pesquisas. Nas últimas semanas, a “frente ampla” de apoio costurada pelo petista, que reúne 15 partidos e até mesmo antigos adversários, atravessou fronteiras, passando a contar com declarações de apoio dos primeiros-ministros de Portugal e da Espanha.
Já Bolsonaro chegou aos estúdios da TV Globo após enfrentar uma semana de fatos negativos, que incluíram o ataque protagonizado pelo seu aliado Roberto Jefferson, o fracasso de uma ofensiva contra a Justiça Eleitoral no âmbito de uma denúncia frágil sobre inserções em rádios do Nordeste, e várias declarações reveladoras do ministro da Economia, Paulo Guedes. Todos os episódios deixaram a campanha do presidente na defensiva.
Segundo a última pesquisa do Datafolha, divulgada na quinta-feira, Lula apareceu com uma vantagem de cinco pontos sobre Bolsonaro nas intenções de votos totais. No primeiro turno, o petista ficou à frente do atual presidente por cerca de seis milhões de votos.
Salário mínimo
Num sinal de que sua campanha sentiu os danos causados por declarações recentes de Guedes envolvendo o salário mínimo, Bolsonaro abordou a questão tentando se pintar com vítima, acusando a campanha de Lula de afirmar falsamente que o atual governo quer acabar com benefícios como pagamento de horas extras, 13º salário e férias.
Embora o governo não tenha mesmo apresentado nenhum plano recente para acabar com esse benefícios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, provocou controvérsia em 2018 quando criticou a existência do 13º.
Além de acusar Lula de propagar mentiras, Bolsonaro ainda tentou criar um fato positivo ao anunciar que pretende reajustar o valor do salário-mínimo para R$ 1.400 em 2023.
Na semana passada, Guedes revelou que o governo estuda desvincular o reajuste do salário mínimo e das aposentadorias do índice de inflação do ano anterior. É a chamada “desindexação”, uma prática que chegou a ser colocada em prática pelo regime militar (1964-1985), mas que se mostrou insustentável.
O plano provocou uma saraivada de críticas e Guedes tentou minimizar o episódio falando que o reajuste de 2023 seria maior que a inflação. No entanto, ele adicionou um novo episódio negativo ao afirmar que o governo Bolsonaro “roubou menos”.
Mesmo a proposta de Bolsonaro de elevar o valor do salário mínimo para R$ 1.400 soou vazia, considerando a soma não está prevista no Orçamento para o próximo ano enviado pelo seu governo ao Congresso em agosto, que menciona apenas um mínimo de R$ 1.302. Bolsonaro também não detalhou como pretende conceder o reajuste.
Lula ainda explorou o tema afirmando que o governo Bolsonaro não concedeu nenhum reajuste acima da inflação. A última alta real, de fato, entrou em vigor em 1º de janeiro de 2019, após ser aprovada pelo governo Michel Temer.
“Durante quatro anos, esse homem governou o país e não deu 1% de aumento do salário mínimo. Esse homem governou por quatro anos e não deu um aumento para merenda escolar que hoje de apenas 36 centavos. Essa é a verdade e isto o povo sabe, porque o povo está sentindo na carne”, disse.
Bolsonaro tentou desviar do tema citando que o país sofreu com a pandemia e uma crise mundial.
“Mentiroso”, “bandido”, “descompensado”
O debate mal havia iniciado quando Bolsonaro chamou Lula de “mentiroso” ao abordar propagandas eleitorais do PT na televisão. O adjetivo seria usado mais de uma dezena de vezes pelos dois candidatos apenas no primeiro bloco.
“Primeiro, o povo brasileiro sabe quem é mentiroso. Hoje eu vi uma revista de fato dizendo que ele mentiu 6.489 vezes durante seu mandato. Só no programa de televisão dele, nós ganhamos 60 direitos de resposta por conta das mentiras dele”, respondeu Lula, logo após Bolsonaro o chamar de “mentiroso” pela primeira vez.
“Essas seis mil e poucas mentiras tá na tua cabeça, você não conta nenhuma aqui. Você não conta nenhuma mentira aqui, tá na tua cabeça. Lula, para de mentir, Lula. Para de mentir. Tá ficando feio, Lula”, devolveu Bolsonaro.
Apesar dos ataques, Lula tentou repetidamente puxar a discussão para temas sociais, citando políticas do seu antigo governo, como o Bolsa Família. Bolsonaro, por outro lado, voltou a temas de ataque já explorados no debate anterior, como a transposição do rio São Francisco. “Você teve mais seis anos de Dilma Rousseff e não levou água para o Nordeste. Você levou foi grana para o teu bolso, transpondo dinheiro público para o teu bolso”, acusou Bolsonaro.
Lula devolveu mencionado os escândalos que atingem a família Bolsonaro, como as “rachadinhas” e a compra de dezenas de imóveis em transações suspeitas.
“Grana para o bolso o povo brasileiro sabe quem levou. O Jair Messias Bolsonaro e sua família. A quantidade de imóveis que eles compraram, a quantidade de rachadinha não está na conta do Lula”, disse o petista.
Visivelmente irritado, Bolsonaro devolveu chamando Lula de “bandido”.
“Você é um bandido, Lula! Cadê os seus Ministros? Cadê Palocci? Cadê José Dirceu? Cadê Genoíno? Cadê essa turma toda? Cadê essa turma toda?”, disse o presidente.
Em outro momento, Lula disse que Bolsonaro parecia “descompensado”. “Parece que o meu adversário está descompensado. Porque ele é um samba de uma nota só”, disse.
Caso Roberto Jefferson
Lula tentou várias vezes se concentrar em temas como fome, emprego e economia. Mas os ataques de Bolsonaro foram a deixa para que Lula trouxesse para o debate o ataque protagonizado pelo ex-deputado Roberto Jefferson no último domingo, que dominou o noticiário político na reta final do segundo turno.
“Ele acabou de tentar esconder o Roberto Jefferson, o pistoleiro dele, o homem das armas, o homem de confiança dele, o homem que recebeu a Polícia Federal a tiros, e fui eu que escondi? Fui eu que escondi?”, disse Lula.
Não foi a última menção ao aliado de Bolsonaro no debate. Na sequência da primeira menção feita por Lula, Bolsonaro tentou se distanciar do ex-deputado, que nos últimos anos foi um dos principais garotos-propagandas da extrema direita negacionista da pandemia no Brasil e uma espécie de “mártir” do bolsonarismo desde que foi preso no ano passado.
No debate, Bolsonaro não só tentou renegar seu aliado incômodo como ainda buscou associá-lo a Lula. “Roberto Jefferson, teu amigo, Lula. Ele pegava a grana de você para comprar votos de deputados dentro da Câmara. Eu estava lá. Eu vi a CPI. E o Roberto Jefferson foi então o delator, contou tudo”, disse.
Assim como no debate anterior, Bolsonaro tentou mais uma vez a associar Lula ao narcotráfico, mencionando o ato de campanha que o petista fez no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Bolsonaro voltou a mentir que Lula ao afirmar que Lula foi ao local sem contar com apoio da polícia. Desta vez, porém, o político de extrema direita, afirmou que “99%” da população da comunidade é “trabalhadora”, tentando reparar a má repercussão da sua fala do debate da TV Bandeirantes, que associou todos os moradores ao crime. Lula devolveu citando mais uma vez Jefferson.
“Sabe qual é o seu modelo de cidadão pacífico? O seu modelo de paz é o Jefferson, armado até os dentes, atirando na Polícia Federal. Aquele que é seu modelo de paz. Seu modelo de tranquilidade. Seu modelo de harmonia“, disse Lula.
Na sequência, Bolsonaro tentou mais uma vez se dissociar de Jefferson. O presidente disse que determinou “que Jefferson fosse preso imediatamente” após o ataque. Uma mentira. Já que a ordem de prisão original – e uma segunda, por tentativa de homicídio – foram determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
Aborto
Contrastando com embates anteriores, coube a Lula abordar o tema do aborto, tentando usar a pauta de costumes a seu favor. Numa tentativa de pintar Bolsonaro como hipócrita, o petista mencionou um discurso que Bolsonaro havia feito em 1992 a favor da distribuição de “pílulas do aborto”. À época, Bolsonaro ainda era um pouco relevante deputado federal do Rio de Janeiro que costumava defender o controle populacional, especialmente dos segmentos mais pobres.
“O candidato se lembra desse discurso? Eu vou ver um trecho aqui. Não adianta uma multidão de brasileiros subnutridos sem condições de servir a seu país. Conclui o teu deputado que oferece que seja distribuído pílula de aborto para a sociedade brasileira em 1992, quando era deputado. Falou isso ou não?, disse Lula.
Visivelmente espantado com a forma que o tema apareceu no debate, Bolsonaro disse que se referia à “pílula do dia seguinte”, embora no discurso Bolsonaro tenha mencionando uma reportagem que falava de pílulas chinesas que poderiam ser usadas por mulheres “grávidas há menos de 49 dias”.
“É isso? Outra coisa, 30 anos atrás? Eu posso mudar”, disse Bolsonaro, que na sequência passou a acusar Lula de ser um “abortista convicto”. O ex-presidente devolveu afirmando que é contra o procedimento.
“Eu vou dizer uma coisa. Primeiro, eu sou contra o aborto, e as minhas mulheres eram contra o aborto. Minha mulher é contra o aborto. E eu respeito a vida porque eu tenho cinco filhos, oito netos e uma bisneta. Portanto, se você quiser jogar a culpa do aborto em alguém, jogue em você mesmo, porque em mim não cola. Em mim não cola”, disse Lula.
Política externa
Tema normalmente ausente dos debates presidenciais brasileiros, a política externa foi mencionada por Lula ainda no início do embate, durante uma crítica a Bolsonaro.
“O que você vai fazer para reinserir o Brasil no mundo? Ou você vai continuar isolado, pior do que Cuba? Você está sozinho. Como é que você vai abrir relações nos outros países se você vive isolado? Ninguém quer conversar com você, ninguém quer vir aqui. Ninguém convida você para ir lá. Ou seja, você se auto-exilou. Qual é a política externa que você vai colocar em prática?”, disse o ex-presidente.
Lula também acusou Bolsonaro de não ter “política de comércio exterior”. “Ele não tem relação com nenhum país do mundo”, disse.
Bolsonaro rebateu com ataques e negando que o país esteja isolado, embora o Brasil tenha mesmo perdido espaço em fóruns internacionais e se distanciado de antigos parceiros, como a UE, os EUA e a China.
“A tua política externa é com o ditador Maduro, é com Cuba, é agora com a Argentina, essa é a tua política externa”, disse o presidente.
“A impressão que eu tenho é que eu estou debatendo com um cidadão estranho à política nacional. Ele sabe que no meu governo nós fizemos a política externa mais eficaz. Eu fui o único Presidente a ser convidado para toda reunião do G8, eu fui Presidente que ajudei criar o Brics, fui o presidente que criou o G20. Quando eu cheguei na Presidência, o nosso fluxo do comércio exterior era menos de cem bilhões, quando deixei era 482 bilhões de reais, além do que, deixei reserva de quase 370 bilhões de reais que está salvando este país até hoje”, rebateu Lula.
Armas de fogo
Os dois candidatos também explicitaram visões antagônicas sobre o comércio de armas de fogo.
Bolsonaro criticou um dos itens do programa do PT que fala em rever a legislação bolsonarista que facilitou o comércio de armas nos últimos anos.
Lula defendeu seu programa e reforçou que é contra a facilitação do comércio de armas de fogo.
“No meu governo a gente vai distribuir livros. A gente vai distribuir cultura. A gente vai facilitar o acesso das pessoas às coisas que eduquem, e não às coisas que matam. É isso que nós vamos fazer. Por isso nós não temos medo de dizer que somos contra a facilitação de armas. Porque ninguém compra arma para educar. Ninguém compra arma para fazer o bem. As pessoas compram armas para matar. Quem está se beneficiando das suas armas é o crime organizado”, disse o petista.
Considerações finais
Durante as considerações finais, Lula voltou a destacar feitos das gestões do PT na área social e disse que pretende “reestabelecer a harmonia” no país.
“Possivelmente, os melhores momentos que esse país viveu nessas últimas décadas foi no tempo que eu governei esse país. Porque não tinha briga, não tinha confusão. Não tinha ódio”, disse Lula.
Bolsonaro, por sua vez, usou suas considerações finais, para reforçar seu discurso de medo e de bordões conservadores, além de direcionar mais ataques a Lula.
“Mais do que escolher um presidente da República, é escolher o futuro da nossa nação. Se nós viveremos em liberdade ou não. Se será respeitado, respeitada a família brasileira. Nós somos 90% cristãos. Se o aborto continuará sendo proibido ou não no Brasil. Nós respeitamos a vida desde a sua concepção. Não queremos a liberação das drogas no Brasil.”, disse.
Ainda em suas considerações finais, Bolsonaro cometeu um ato falho, pedindo que os eleitores votem nele para “deputado”. “Muito obrigado, meu Deus. E se essa for a sua vontade, estarei pronto para cumprir com mais um mandato de deputado federal”, finalizou.
Fonte: dw.com