RS: Enchentes, neoliberalismo, destruição ambiental e o sistema da dívida

RS: Enchentes, neoliberalismo, destruição ambiental e o sistema da dívida
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Segundo o Ministério da Fazenda, o governo federal anunciou neste mês de maio a suspensão do pagamento do serviço da dívida do Rio Grande do Sul com a União por um período de três anos. Esta iniciativa visa evitar gastos de R$ 11 bilhões com as parcelas e mais R$ 12 bilhões com os juros da dívida, no período –  de uma dívida que soma R$ 97,7 bilhões. Por tanto, se trata de suspensão do pagamento por esse período, já que em seguida esse valor não pago terá que ser desembolsado. Desta forma, essa proposta apenas  suspende temporariamente. Com isso esse estado apenas prolonga o drama fiscal, pois terá que pagar o atrasado, mesmo que sem os juros, que poderá levar ao colapso fiscal mais a frente, considerando que o Estado terá uma grande redução de sua atividade econômica, fruto da atual tragédia, que resultará na redução de suas receitas, já que não pode elevar a carga tributária.  Conforme Arildo Oliveira, presidente em exercício da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS) 90% do nosso PIB industrial está  alagado, embaixo da água.  Com isso teremos uma queda da atividade econômica que levará a uma queda da arrecadação ainda maior.

Todavia, o quadro fiscal deste Estado se torna mais delicado quando constatamos que já estava sob  Regime de Recuperação Fiscal (RRF), desde 2017. Esse regime é aplicado para “ajudar” os estados com elevados níveis de endividamento em relação às suas  receitas, sem tocar nas causas fundamentais desta crise fiscal. Ele consiste num plano de recuperação  com medidas de austeridade visando esse equilíbrio fiscal, com a introdução de um teto de gastos e previdência complementar e privatizações.  Com o RRF, a dívida contraída pelos estados junto à União seria parcelada e paga de forma escalonada. O plano do RS prevê parcelamento até 2030, quando o estado deve ter condições de quitar os débitos. Na essência temos uma nova dimensão de tetos de gastos na politica fiscal deste Estado, já que o limite dos gastos foi exigência das várias etapas de renegociação, seja em 1997, quando a divida foi federalizada pela Lei 9496/97  e rolada por 30 anos ou pela Lei Complementar 156,  que em 2016 rolou  essa dívida por mais 20 anos. Mesmo com a criação Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF de 4 de maio de 2000, que estabelecia limite de gastos sociais da  União, estados, Distrito Federal e municípios, a divida pública continuou a crescer.

A divida pública do Estado do RS, segue a mesma trajetória dos demais estados brasileiros. Sua divida atual teve sua origem mais recente no endividamento externo, especialmente depois do Golpe Cívico Militar de 1964. Todavia, seu endividamento externo, conforme as resoluções do Banco Central, teve em inicio em 1952 e se encerrou em 2000[1]. Esse processo de endividamento teve várias fases. No primeiro momento foram empréstimos externos. No final dos anos 1980 teve inicio o processo de internalização da dívida estadual. A partir de 1997, com a Lei 9496,97 esta dívida foi federalizada. Seus empréstimos ocorreram na área de eletrificação, usina térmica, telecomunicações, Portos, contenção de enchentes, rodoviário, companhia estatal de energia, refinanciamento da dívida externa, constituição do SIVAM, combate a pobreza e ao êxodo rural. Neste Estado se repetiu a preocupação do Banco Mundial de combate a pobreza justamente depois de ter incentivado esse processo no financiamento de ações que geraram a amplificação das desigualdades regionais e sociais.

Essa divida externa no regime  Cívico Militar é marcada por profunda ilegitimidade como demonstrou a CPI da dívida pública de 2009 a 2010. Em grande parte esses empréstimos serviram para a implantação de infra estrutura necessária para a acumulação de capital, que tentava legitimar governos apoiadores da Ditadura. Como se tratava de empréstimos, principalmente, junto ao Euromercado de moedas, que praticavam juros flutuantes, essas dívidas explodiram quando os EUA elevaram a taxa de juros de 5% para 20%, em 1979, quando tentavam estabilizar a moeda estadunidense e revalorizar o dólar. Tal iniciativa exigiu, naquele momento, um ajuste fiscal para pagar um volume maior de juros, que acabou contribuindo com a crise fiscal dos Estados que acabou levando ao surgimento da Lei 9496/97 que federalizou as dividas dos Estados.

No entanto, o crescimento dessa dívida tornou-se ainda mais acelerado a partir de 1994, quando a politica de juros altos usado para garantir a estabilidade do Real. Como mostra o gráfico abaixo a crise mexicana de 1995, asiática de 1997 e Russa de 1998, acabaram levando a uma elevação ainda maior  da taxa básica de juros no brasil.  O fato mais marcante desta elevação da dívida dos estados resultou  das regras impostas a cada Estado para rolar essa divida por 30 anos. No caso do RS e da maioria dos Estados, a União cobrou uma taxa de 7,5% ao ano mais IGP – DI e a obrigação de pagar 13% da Receita Corrente Líquida todo ano. Neste processo foi cobrado pela União os juros sobre juros entre ente estatais também chamado de anatocismo. Esse mecanismo acabou por acelerar ainda mais o crescimento da divida. Depois de 20 anos, e já tendo pago três vezes o volume inicial de empréstimos ainda devia quase quatro vezes.    Não podemos esquecer que parte considerável desta divida pública tem sua origem na dívida assumida pelo governo estadual vinda  do Banco estatal BANRISUL, via  PROES, quando converteu dívidas privadas da burguesia gaúcha junto a esse banco em dívida pública. Em 2016, quando ocorreu essa nova renegociação via Lei Complementar 156, a divida vinda do PROES – BANRISUL era de R$ 11 bilhões. Vale lembrar que essa divida pública originada na conversão de dívida privada contraída pela burguesia gaucha não honrada junto a esse banco é ilegal.

            É importante destacar que os Estados tiveram uma grande possibilidade de redução deste saldo devedor junto a União, tendo em vista que a Súmula 121 do STF declarava ilegal a dívida ou o saldo devedor de cada Estado que resultasse da pratica deste anatocismo.  Onze estados tinham ganho liminares junto ao STF com base nesta Súmula, o que poderia reduzir ou em alguns casos até transformar o Estado em credor junto a União, se fosse retirado essa forma ilegal de juros do cálculo do saldo devedor. Entretanto, todos os governadores preferiram renegociar como o governo federal uma nova rolagem e redução de índices.

Com isso surgiu a Lei Complementar 148, seguida da Lei Complementar 156, que rolou a divida por mais 20 anos, ao mesmo tempo que permitiu uma nova etapa de endividamento, seja externo ou interno dos Estados, desde que privatizassem as estatais que restavam e implementassem politicas de teto de gastos em cada Estado. Em outras palavras, o governo federal rolou a divida dos Estados por 30 anos e 20 anos depois os estados  se declaravam em calamidade fiscal e abriram mão de fazer cumprir a Súmula 121, que em seguida levou o RS ao Regime de Recuperação Fiscal que antecede a essa tragédia.  Ou seja, mesmo antes desta tragédia o Estado já estava hiper endividado.

Outro fator que tem grande repercussão sobre a situação fiscal dos Estados, resulta das crescentes renúncias fiscais dentro da Guerra fiscal, entre os estados para atrair empresas. Esta forma de renuncia mais a Lei Kandir têm determinado uma grande perda de arrecadação que compromete as despesas de cada ente estatal. A Lei Kandir, de 1996, que dispõe sobre o imposto dos Estados nas operações relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS), isenta deste tributo os produtos primários e semielaborados destinados à exportação. O RS, em particular tem um efeito devastador, já que os Estados exportadores são penalizados pela desoneração desta Lei, que não são compensados pela União. Com isso as perdas por essa Lei em 2023 chegam a R$ 38 bilhões, que representa quase um terço da divida atual. Em outras palavras, o modelo de desenvolvimento em vigor no pais e em destaque no RS, que prioriza a exportação é a base fundamental da perda para cada Estado e compromete a receita que acaba levando ao um cenário que conduz ao Regime de Recuperação Fiscal. Nos 28 anos de existência desta Lei temos um dos principais motivos da crise fiscal. Por outro lado, o agronegócio que recebe todas atenções das três esferas do poder público é o grande responsável queda na arrecadação do Estado e o principal responsável pelas mudanças climáticas que estão no centro da explicação da atual tragédia das enchentes, que foi antecedida por uma grande seca na região.

No gráfico abaixo podemos observar que o quadro se servidores do RS já teve uma grande redução de 1991 a 2017 e não pode ser responsabilizado pelo aumento das despesas do Estado. Ao mesmo tempo, esse quadro reduzido de servidores pode ser um obstáculo para o bom funcionamento dos serviços públicos tão fundamentais num momento de calamidade. Os problemas do Estado são: elevadas divida pública junto ao União, Grande renuncia fiscal, seja da guerra fiscal ou da Lei Kandir e desmonte da maquina pública com intenso processo de privatização ocorrido.  Além disso, esse Estado foi um grande laboratório de politicas neoliberais e anti sociais tendo uma bancada parlamentar, que na maioria compõe a bancada B, B, B, B, (Boi, Bíblia, Bala e Bancos) sempre atuante nas pautas mais conservadoras. A realização de uma auditoria esta dívida do RS é tarefa fundamental para revelar o caráter de classe dessas dividas, demonstrando como o pagamento de uma dívida feita para impulsionar a acumulação privada inviabiliza as politicas sociais.

José Menezes Gomes

 

[1]     No nosso levantamento consideramos o período de 1948 a 2003.

[2]     Ver https://slideplayer.com.br/slide/7310134/


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