Seis anos depois do fim oficial da Minustah, a operação militar de paz liderada pelo Brasil no Haiti, brasileiros devem voltar a atuar na área de segurança do país caribenho, que vive um colapso das instituições, com grande parte da capital, Porto Príncipe, sob controle de cerca de 160 gangues.
Dessa vez, porém, o Brasil não pretende mandar tropas das Forças Armadas Brasileiras para atuarem sob o manto dos conhecidos capacetes azuis, marca das missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU).
Segundo ao menos cinco embaixadores brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil, o governo brasileiro está decidido a fornecer treinamento à Polícia Nacional do Haiti (PNH).
“Há, de fato, o comprometimento do governo brasileiro como um todo em apoiar a capacitação das forças de segurança do Haiti. É uma iniciativa que vem sendo coordenada pelo Ministério de Relações Exteriores em conjunto com a Agência Brasileira de Cooperação e com a Polícia Federal (PF)”, afirmou à BBC News Brasil o delegado Valdecy Urquiza, diretor de Cooperação Internacional da Polícia Federal (PF).
O último passo que faltava para que o plano fosse colocado em marcha foi dado nesta segunda, 2/10: o Conselho de Segurança da ONU aprovou o envio de uma força policial internacional ao país, liderada pelo Quênia. Embora não se trate de uma missão de paz da ONU, o aval da organização era considerado imprescindível para trazer segurança jurídica às nações que atuarão no esforço – inclusive o Brasil
O Brasil votou a favor da medida e, por meio de seu embaixador Sérgio Danese, disse estar “pronto para continuar suas atividades de cooperação e examinar formas de contribuir com a Missão Multinacional de Apoio à Segurança do Haiti”.
A expectativa é que uma equipe da Polícia Federal visite Porto Príncipe na segunda quinzena de outubro pra definir o escopo do trabalho
Discutida há meses em Brasília, a disposição teria sido comunicada ao primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, pelo próprio presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante uma conversa entre os dois líderes no dia 22 de junho, em Paris, na França, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil.
A cooperação entre as polícias seria o modo pelo qual o Brasil estaria disposto a apoiar o Haiti no combate à onda de violência que gerou ao menos dois mil homicídios e mil sequestros apenas no primeiro semestre de 2023, segundo estimativas da ONU.
O treinamento será responsabilidade de uma equipe da Academia Nacional da Polícia Federal, que concluirá em outubro um diagnóstico sobre as principais necessidades das forças policiais do país. Segundo disse Urquiza, em agosto, a ideia é que ao menos uma primeira turma de policiais haitianos, com algo entre 80 e 100 alunos, já estivessem completamente treinados ainda este ano, em Brasília, e possivelmente outras centenas submetidos a treinamentos em território haitiano.
Em vez de se lançar ao combate à criminalidade local, como o Exército Brasileiro fez durante 13 anos na área – de 2004 a 2017 – , Urquiza diz que o Brasil quer ver reduções da criminalidade local operada pelo policiamento haitiano treinado pelo Brasil. A participação das Forças Armadas brasileiras na nova atuação está descartada.
“Nós queremos apoiar as forças de segurança do Haiti para que eles tenham condições de manter a atividade de segurança pública no país. Esse é o compromisso do governo brasileiro, da Polícia Federal, para que eles sejam autossuficientes em relação à segurança pública”, diz Urquiza.
“Então, (queremos ) formar policiais que sejam multiplicadores, para que rapidamente isso alcance o maior número possível de policiais haitianos, com o objetivo de ver os índices de criminalidade no país reduzidos pela ação da própria força de segurança local.”
Força Multinacional
A concretização da cooperação atrasou em relação à expectativa do Brasil, já que dependia justamente da aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU. Diplomatas brasileiros e estrangeiros esperavam que o assunto estivesse resolvido anes da Assembleia Geral da ONU, que aconteceu em Nova York, em 18 de setembro.
Em carta ao Conselho, no último dia 15 de agosto, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, exortou os membros do Conselho (do qual o Brasil faz parte como integrante temporário) a chancelar “uma força policial multinacional especializada e capaz, habilitada por meios militares, coordenada com a polícia nacional (haitiana)”.
A Força Multinacional era a alternativa viável às tradicionais missões de paz da ONU, cuja imagem ficou manchada após investigações jornalísticas mostrarem, entre outras falhas e desvios, centenas de casos de abusos sexuais por militares das forças de paz no próprio Haiti, no Congo e na República Centro Africana. No Haiti, a missão de paz também introduziu a cólera ao país, que já gerou epidemias locais.
Em seu discurso na abertura do evento, o presidente Lula chegou a citar a “crise humanitária no Haiti” e em conversa com o presidente americano Joe Biden ouviu um pedido para que o Brasil usasse suas boas relações com Pequim e Moscou para tentar facilitar o trânsito da medida no Conselho.
Rússia e China, que costumam barrar propostas que lhes soem como intervenção estrangeira em territórios alheios, estariam desencorajadas de votar contra já que, desde outubro de 2022, as autoridades haitianas têm explicitamente apelado pelo envio de uma força multinacional em socorro ao país.
“Mesmo em um conselho bastante conflagrado como o atual, com China e Rússia em tensão com EUA e europeus, a expectativa é que a força seja aprovada porque há um pedido dos próprios haitianos pelo envio da força”, diz um diplomata que atua no conselho de segurança da ONU.
Em maio, uma pesquisa telefônica feita com 5 mil pessoas no Haiti pela Alliance for Risk Management and Business Continuity (Agerca) mostrou que 71% dos respondentes não acreditavam que a Polícia do Haiti teria condições de repor segurança ao país e 69% se diziam favoráveis ao envio de uma força policial internacional para ajudar a pacificar o país.
O Quênia se comprometeu a enviar mil policiais ao país e já remeteu uma delegação ao Haiti no fim de agosto, mesmo sem a aprovação no conselho. A força multinacional também deve contar com missões ostensivas de outros países caribenhos de língua inglesa, como Jamaica e Bahamas.
Se patrulharão o país armados ou se farão uma espécie de segurança estática de pontos-chave do país, como portos e aeroportos, é algo ainda em discussão pela comunidade internacional. Outros países, como EUA e Canadá, estariam dispostos a financiar ao menos em parte o trabalho.
A participação brasileira ficaria, por ora, restrita ao treinamento policial – e autoridades brasileiras descartam, por enquanto, que policiais brasileiros atuem ostensivamente na segurança do território haitiano. “
“Não posso falar pelos arranjos bilaterais que o Brasil e o Haiti possam ter. O que posso dizer, porém, é que qualquer ajuda para fortalecer a Polícia Nacional do Haiti é boa, e isso inclui treinamento”, afirmou à BBC News Brasil María Isabel Salvador, Representante Especial da Secretaria-Geral e Chefe do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH), que esteve em Brasília no começo de setembro. Salvador também foi ao México e ao Chile, em um esforço para sensibilizar países da região sobre a urgência do auxílio aos haitianos.
Na visita que farão nas próximas semanas ao Haiti, os agentes da Polícia Federal pretendem terminar um diagnóstico sobre os tipos de treinamento policial mais urgentes para os haitianos.
Uma das propostas à mesa é a de que os brasileiros ajudem os haitianos a criar um serviço de inteligência para investigações – capacidade de que a Polícia Nacional do Haiti hoje não dispõe – e que explica, por exemplo, como gangues haitianas pedem dezenas de resgates de sequestros usando um único número de telefone celular.
Os haitianos teriam aulas sobre como investigar objetos apreendidos, periciar materiais e usá-los como prova em investigação.
A segunda proposta é a de oferecer treinamento para combate a guerrilhas urbanas em territórios conflagrados.
Segundo o delegado Urquiza, a Polícia Federal teria condição de oferecer capacitação para grupos táticos de pronta intervenção, mas só será possível saber se essas ferramentas são suficientes ou se seria necessário parcerias com polícias militares ao final do diagnóstico a ser feito em setembro.
Caso se mostre necessário envolver as polícias militares, de acordo com três diplomatas com conhecimento das negociações que falaram sob anonimato à BBC News Brasil pela sensibilidade do tema e pela indefinição, a tendência é de que o Brasil ofereça aos haitianos parceria com destacamentos de elite das polícias que atuem em áreas brasileiras com desafios similares e que já tenham antes atuado no Haiti, como o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope).
Além disso, o mais provável é que o Brasil traga alguns policiais haitianos para serem treinados no Brasil mas também envie instrutores a Porto Príncipe, para maximizar o número de agentes capacitados.
O governo Lula trata o assunto com discrição, tanto pela indefinição dos detalhes operacionais quanto pelo potencial polêmico do assunto. Oficialmente, o Planalto não comentou.
“Os abusos cometidos pelas polícias brasileiras são um dos problemas mais urgentes e crônicos de direitos humanos no país, que afetam desproporcionalmente a população negra”, disse à BBC News Brasil César Muñoz, diretor adjunto para as Américas da ONG Human Rights Watch, que monitora a situação haitiana.
“Se policiais brasileiros forem enviados ao Haiti para treinar a polícia local é fundamental que as unidades e os agentes selecionados, inclusive os comandantes, sejam avaliados minuciosamente para garantir que não estejam envolvidos em violações de direitos humanos ou má conduta.
Pressão sobre o Brasil e caos no Haiti
Desde seu início, o governo Lula enfrentou intensa pressão, especialmente dos Estados Unidos, para voltar a liderar algum tipo de ação militar no país.
Ao menos desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021, o país vive uma situação de colapso. Os últimos mandatos de deputados e senadores expiraram no começo de 2023 e não há representantes eleitos nem para o Congresso, nem para a Presidência.
O governo provisório do primeiro-ministro Henry não vê condições de fazer eleições, dada a falta de segurança. O país possui cerca de dez mil policiais – para uma população de quase 12 milhões de pessoas (em comparação, o Estado de São Paulo, com 44,5 milhões de habitantes, possui 80 mil policiais militares). Além disso, no Haiti, quase 5 milhões passam fome atualmente.
As condições de desabastecimento da população são agravadas pela atuação das gangues, que dificultam o escoamento da produção agrícola de uma região à outra do Haiti.
No ano passado, uma das facções tomou o controle do principal terminal portuário haitiano, e passou a impedir a chegada de combustível e até mesmo de água potável ao Haiti, que naquele momento enfrentava uma epidemia de cólera.
Diante da situação, boa parte da população tenta deixar o país – e o destino preferencial são os EUA. Entre outubro de 2020 e maio de 2023, agentes de migração americana encontraram haitianos tentando cruzar a fronteira entre EUA e México ao menos 146 mil vezes. E até maio, havia 580 mil pedidos de acolhida humanitária para haitianos no país. Isso explica, em parte, a urgência dos americanos em ver algum tipo de solução para o problema.
“Tanto os Estados Unidos quanto o Brasil estão profundamente preocupados com a situação no Haiti. Durante sua visita ao Brasil em maio, o secretário adjunto (Brian) Nichols conversou com os líderes brasileiros sobre as opções para abordar a questão e (eles) se comprometeram a trabalhar juntos para abordá-la de forma mais direta, principalmente no Conselho de Segurança.
Estamos envolvendo o Congresso enquanto trabalhamos para garantir recursos para apoiar uma Força Multinacional (policial) no Haiti e com a comunidade internacional para fornecer financiamento, equipamento, treinamento e pessoal”, afirmou um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA após ser questionado pela BBC News Brasil sobre a intenção do Brasil de oferecer treinamento policial ao Haiti.
Aos americanos, o governo Lula descartou por completo liderar uma nova missão no país. A avaliação do governo brasileiro é a de que, depois de 13 anos de atuação do Brasil, o Haiti está hoje pior do que antes. Os resultados da Minustah são, no mínimo, ambíguas: drenaram recursos financeiros, custaram vidas haitianas e brasileiras e, depois de mais de uma década, não produziram estabilidade ou avanços institucionais duradouros para o Haiti.
Na perspectiva do Brasil, portanto, a atuação militar ou policial simplesmente não é capaz de oferecer saídas para os haitianos. “Não é só segurança. Segurança pública é o primeiro passo para que outros atores internacionais, de ajuda humanitária, de apoio técnico e de desenvolvimento econômico e democrático também possam atuar”, diz um embaixador com conhecimento direto da situação no Haiti.
O trabalho de treinamento dos policiais brasileiros, de acordo com integrantes do Executivo, deve ser seguido da atuação de organizações com fins de promoção aos direitos humanos, como a Viva Rio e o Instituto Igarapé – que atuam ou já atuaram antes no país caribenho.
“O Haiti precisa de uma resposta multidimensional baseada em direitos humanos para lidar com a gravíssima crise atual”, afirma Muñoz, da Human Rights Watch.
Para ele, embora melhorar o desempenho da polícia haitiana seja muito importante, essa resposta multidimensional também precisa abordar outras questões-chave, como ajudar o Haiti a “retomar o caminho da real governança democrática, restabelecer o Estado de direito, abordar a disfuncionalidade do sistema judiciário, fortalecer o respeito aos direitos humanos e fornecer ajuda humanitária e outros serviços básicos às pessoas em situação de vulnerabilidade”.
Consultado oficialmente, o Itamaraty afirmou por meio de nota que “o governo brasileiro continua atento à crise multidimensional no Haiti e estuda as melhores formas de auxiliar aquele país, tanto bilateralmente quando por meio de iniciativas multilaterais” e relembra que “até o momento, nenhuma proposta concreta foi apresentada ao Conselho de Segurança das Nações Unidas” e que “eventual envolvimento do Brasil dependerá de uma série de fatores, inclusive o mandato e o formato que eventual força multinacional venha a ter”.
Fonte: bbc.com