Em livro, o historiador britânico discute surgimento do projeto cristão e como ele moldou o desenvolvimento do Ocidente
Num mundo em que a “data de nascimento” de Jesus é a base do calendário mesmo em países não cristãos, no qual as pessoas penduram cruzes no pescoço como meros acessórios de moda, é quase impossível perceber como as ideias que geraram o cristianismo eram contraintuitivas e profundamente chocantes 2.000 anos atrás.
Em seu mais recente livro, intitulado “Domínio”, o historiador britânico Tom Holland argumenta que o sucesso do projeto revolucionário cristão foi tão grande que hoje ele parece invisível, apesar de ainda influenciar até movimentos hostis à religião.
Ambição intelectual e temporal é algo que definitivamente não falta à obra de Holland –ao longo de 642 páginas, ele vai das guerras entre gregos e persas no século 5 a.C. às batalhas das redes sociais nos últimos anos. Seu objetivo é mapear como o surgimento do cristianismo moldou de forma peculiar o desenvolvimento do que costumamos chamar de Ocidente, criando uma maneira de pensar que não seria encontrada em nenhuma outra parte do mundo e que influenciou de forma decisiva o curso da história.
O historiador aborda essas questões de grande escala com todo o zelo de um recém-convertido. Não que ele tenha se convertido à fé cristã, é bom que se diga (Holland, criado como anglicano, é ateu). Sua paixão original e mais duradoura, em termos históricos, é pelo mundo do paganismo, tendo publicado dois livros sobre a ascensão e o desenvolvimento do Império Romano (um terceiro volume deve sair em 2023).
“Quando eu lia a Bíblia, o foco de minha fascinação era menos nos filhos de Israel ou Jesus e seus discípulos e mais em seus adversários: os egípcios, os assírios, os romanos”, escreve ele. “Descobri que o Deus bíblico era infinitamente menos carismático que os deuses gregos. Admirava seu glamour de astros do rock.”
No entanto, diz Holland, quanto mais ele examinava as grandes civilizações da Antiguidade clássica, mais ele percebia a existência de um abismo entre a maneira de pensar e os valores greco-romanos e o mundo onde tinha crescido. Para o historiador, foi ficando claro que o tamanho desse abismo não se devia apenas à distância temporal, mas à transformação trazida pelo surgimento e triunfo do cristianismo no Ocidente.
O maior símbolo dessa transformação é a cruz. Na Antiguidade, tanto entre os politeístas gregos e romanos quanto entre os monoteístas judeus, não havia nada mais vergonhoso e digno de asco do que o corpo de alguém executado por crucificação. A morte lenta e excruciante (palavra, aliás, que também vem de “cruz” em latim), na qual o criminoso, nu, era exposto à zombaria do público e à cobiça de cães e aves carniceiras, estava reservada aos que eram considerados a escória do mundo. Apenas escravos rebeldes, ladrões de beira de estrada e revoltosos pobres que ousavam se levantar contra o poderio de Roma eram pregados (ou amarrados) numa cruz.
Ao transformar Jesus, um profeta camponês que tivera esse destino humilhante, no Filho de Deus, a crença cristã se mostrava subversiva no sentido original do termo. Ou seja, era uma fé que colocava os mais insignificantes e desprezados súditos da ordem social romana, os que estavam “lá embaixo”, na posição mais elevada – “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”, como dizem os Evangelhos.
Como se isso já não fosse suficientemente ameaçador para o senso de hierarquia e controle político de Roma, o movimento cristão nascente propunha, no fundo, uma alternativa à chamada “Pax Romana” – a paz imposta pelos imperadores à bacia do Mediterrâneo, garantida pelas lanças e espadas das legiões. Nas palavras do apóstolo Paulo, um judeu de língua grega convertido à fé em Jesus: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”.
Essa promessa de unidade que transcendia as fronteiras étnicas, de gênero e de condição social parecia competir com a “Pax Romana” também pelo fato de que o movimento cristão nascente não reconhecia a legitimidade da religião oficial de Roma. Essa “religião cívica” romana era, sob muitos aspectos, extremamente tolerante, aceitando deuses das mais diversas culturas do Império debaixo de seu guarda-chuva. Mas os cristãos, além de rejeitarem esses deuses, também rejeitavam o culto aos imperadores romanos, vistos como deuses na Terra —e, portanto, implicitamente, recusavam o grande símbolo unificador do poder imperial. Isso explica porque os cristãos passaram a ser perseguidos por Roma.
É possível que justamente esse potencial unificador tenha sido um dos motivos que levaram o imperador romano Constantino (272 d.C. – 337 d.C.) a acabar com a perseguição aos cristãos e a adotar a fé pregada séculos antes por Paulo. Seus sucessores acabariam transformando o cristianismo em religião oficial do Império e, por fim, na única permitida (com exceção do judaísmo).
Parecia uma contradição completa em relação ao caráter original da fé –os perseguidos que se tornavam senhores de Roma e perseguidores. Mas, como Holland demonstra convincentemente no restante do livro, o “DNA” cristão original nunca foi apagado totalmente. E isso significava que, de tempos em tempos, a intuição inicial dos seguidores de Jesus –Deus se manifesta na fraqueza, e não na força; os últimos serão os primeiros– voltava a adquirir força transformadora e desafiava inclusive a nova hierarquia criada pela Igreja.
Será que Holland não força a barra ao dizer que esse impulso, em última instância, está por trás de movimentos como o Iluminismo, o socialismo e mesmo o movimento “woke” na internet das últimas décadas? É possível –uma das falhas do livro talvez seja não reconhecer que as tendências igualitárias e compassivas da tradição cristã também estão presentes em outras correntes religiosas e filosóficas.
Tendo esse defeito em mente, porém, a obra é uma bem-vinda lembrança da radicalidade da história que começou dois milênios atrás.
Fonte: diariodecuiaba.com.br