Ferrovia somente pode passar a menos de 10 km de terras indígenas com autorização dos mesmos, da Funai e do MPF
Projetos e obras ferroviárias são demorados. A Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO) é um bom exemplo dessa lentidão. Além das amarras burocráticas e dos recursos nem sempre desembolsados a tempo, a FICO tem um grande gargalo para enfrentar para que possa receber a Licença de Instalação do Ibama ao longo de seu trajeto de 383 km entre Mara Rosa (GO), à margem da Ferrovia Norte-Sul, e Água Boa, no Vale do Araguaia.
O ano passado marcou o início de sua obra, em setembro, mas 2023 terminou igual a 2022: sem o sinal verde do Ibama. Indiferentes a essa realidade, políticos e produtores rurais comemoram o avanço dos trilhos, sem nenhuma ação para impedir o descarrilamento do trem. Para poder apitar em Água Boa o trem precisa superar o bloqueio de intervenção num trajeto de 74 km, entre os KM 308 e 382, quase no ponto final do percurso em Mato Grosso, por conta das terras indígenas Pimentel Barbosa e Areões, ambas da etnia Xavante. Em 2020 o Ibama concedeu à FICO a Licença de Instalação nº 1.364, mas com bloqueio no trecho vizinho às terras indígenas. A lei determina que na Amazônia Legal a ferrovia não pode cruzar área com distância igual ou inferior a 10 km de terra indígena.
Não será fácil obter aquiescência dos xavantes, da Funai e do Ministério Público Federal (MPF) para a obra nos 74 km com bloqueio de intervenção. Se isso não for possível será preciso alterar o trajeto, o que implica em trajeto maior, mais tempo de construção e aumento do custo para a Valec, empresa da mineradora Vale, e que responde pelo projeto.
FERROVIA – O projeto da FICO (EF-354) começou em 2007, quando o presidente Lula lançou o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), que previa investimentos de R$ 503,9 bilhões em nove eixos, sendo um do transporte, que incluía essa ferrovia. A construção não saiu do papel. Em 2010, a presidente Dilma Rousseff lançou o PAC II que previa investir R$ 1,59 trilhão para sacudir o Brasil – e a FICO foi contemplada com ele. O primeiro trajeto previa que a interseção com a Norte-Sul fosse em Campinorte, mas em função de um trecho acidentado, o traçado foi alterado para Mara Rosa.
Com Lula no segundo mandato e Dilma, a FICO não passou de projeto. Michel Temer assumiu a Presidência. Três ministros liderados por Blairo Maggi (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) costuraram o modelo para a construção da FICO. Os outros ministros: Valter Casimiro Silveira (Transporte, Portos e Aeroportos) e Carlos Marun (ministro-Chefe da Secretaria de Governo).A costura. A Vale tem duas ferrovias cujas concessões estão próximas de vencer: a Estrada de Ferro Vitória a Minas e a Estrada de Ferro Carajás. Marun à frente, negociou com a Vale: renovamos as concessões a desembolso zero e você constrói a FICO entre Campinorte (GO), à margem da Ferrovia Norte-Sul, e Água Boa.
A Vale topou. Essa costura passou pelo labirinto do poder, incluindo a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) e o braço executivo da Vale, a Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S/A. Quando a obra for concluída o trecho será entregue ao governo, que o dará em concessão, como acontece com as demais ferrovias. Sua construção e fiscalização está sob a responsabilidade da empresa Infra S/A. Por essa costura o governo não desembolsa pela obra. Em pagamento renova duas concessões ferroviárias da Vale. Isso é o que se chama parceria-público privada (PPP) nos dois sentidos. Ao término da construção a ANTT assume a ferrovia e a dará à concessão.
A obra da FICO foi lançada em 27 de setembro de 2021 em Mara Rosa, pelo então presidente Jair Bolsonaro, acompanhado pelo governador anfitrião, Ronaldo Caiado; o deputado federal José Medeiros; o deputado estadual Dr. Eugênio; e prefeitos goianos e mato-grossenses.Ferrovia requer carga permanente e para alcançar lucratividade não pode ser manga curta, como o trecho de 383 km da FICO.
Especialistas citam que em distâncias inferiores a 500 km, independentemente do volume transportado, o melhor sistema é o rodoviário. Ou seja, considerando-se o ponto de partida em Água Boa e o desembarque em Mara Rosa, o trem perde importância.
A FICO, no entanto, foi planejada para ser uma grande transoceânica Leste-Oeste ligando o Rio de Janeiro e a Bahia ao Acre, cruzando grandes regiões produtoras de grãos, fibras, carnes e com imenso potencial mineral, e criando um corredor entre o Brasil e o Peru pela região central do continente. Não há nada de concreto sobre os demais trechos da FICO previstos para 4.400 km entre o litoral Norte fluminense, a Bahia e Boqueirão da Esperança, no Acre, na fronteira do Brasil com o Peru.
Porém, Mato Grosso defende o imediato começo da construção do trecho com 505 km entre Água Boa e Lucas do Rio, onde chegarão os trilhos da Ferrovia Senador Vicente Vuolo, que farão a ligação daquele município com o porto de Santos. A obra entre Água Boa e Lucas não fará parte da PPP do governo com a Vale
.ÁGUA BOA – Cidade com 30 mil habitantes, no centro geodésico do Brasil, Água Boa é interligada à rede rodoviária nacional pela BR-158 que liga Mato Grosso ao Pará num trajeto paralelo ao rio Araguaia. Um dos principais polos agrícolas mato-grossense é o de Água Boa, formado por aquele e os vizinhos municípios de Canarana, Nova Xavantina, Campinápolis, Novo São Joaquim, Ribeirão Cascalheira, Querência, Gaúcha do Norte e Porto Alegre do Norte. Em Cocalinho, na área onde os trilhos cruzarão, há uma grande reserva de minério de ferro, considerada de alto teor. Lideranças regionais defendem a criação de um parque agroindustrial em Água Boa, para diversificar a oferta de cargas, gerar empregos e promover desenvolvimento
.XAVANTES – A etnia Xavante é aldeada no Vale do Araguaia e não aceita violação de suas áreas, o que acende todas as luzes de advertências sobre a FICO. A Terra Indígena Marãiwatsédé, em Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia, foi devolvida aos xavantes em dezembro de 2012, depois de ser ocupada por mais de 40 anos por posseiros. A rodovia BR-158 cruza aquela área; e o cacique Damião Paradzané não aceitou sua pavimentação e exigiu mudança de trajeto, o que foi aceito pela juíza da Vara Federal única em Barra do Garças, Danila Gonçalves de Almeida. O governo federal trabalha na construção de um contorno para liberar a área.
GOIÁS – Independentemente do bloqueio de intervenção em Mato Grosso, Goiás comemora a obra da FICO em 69,2 dos 225 km em território goiano. Esse trecho deverá ser concluído em 2024. Do lado goiano, os trilhos cruzarão os municípios de Mara Rosa, Alto Horizonte, Nova Iguaçu, Pilar, Santa Terezinha de Goiás, Crixás, Nova Crixás e Aruanã.
Fonte: diariodecuiaba.com.br