MT: EMBATE DE CULTURAS: “Existe ódio contra os indígenas; ódio provocado pela cobiça”

MT:   EMBATE DE CULTURAS:   “Existe ódio contra os indígenas; ódio provocado pela cobiça”
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Presidente de federação indígena fala das condições nas aldeias em MT e da falta de políticas para os povos

Presidente da Fepoimt (Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso), a bakairi Eliane Xunakalo avalia que a situação vivida pelos yanomamis em Roraima – com problemas sanitários, desnutrição e ameaça do garimpo – servem de alerta para Mato Grosso também. Ela diz que é preciso haver uma união das três esferas de governo para melhorar as condições de vida dos povos da floresta.

Existe ódio sim, por várias questões. Por causa do nosso território, por causa do que há nele, minérios

Mas Eliane também enxerga um outro problema, talvez até mais grave e de difícil solução: o preconceito e o ódio contra indígenas tanto em Mato Grosso quanto no Brasil.

“Existe ódio sim, por várias questões. Por causa do nosso território, por causa do que há nele, minérios. Infelizmente, o ódio é provocado pela cobiça de ser rico, ter posses”, diz.

Eliane ainda pede que as pessoas compreendam que os indígenas não são um obstáculo, mas aliados do País porque ajudam a preservar a biodiversidade

Leia abaixo trechos da entrevista:

MidiaNews – A tragédia dos yanomamis serve como alerta para a situação dos povos indígenas no Brasil?

Eliane Xunakalo – Eu considero que essa situação dos parentes serve de alerta para o Estado. Para o Estado [entender] que é necessário ter políticas públicas para que os povos indígenas possam ter visibilidade e possam ser considerados nas discussões sobre seu território, sua vida. [Também serve de alerta] a nível de Governo Federal… A gente fica muito surpreso quando vê que a sociedade não acreditou nos alertas feitos por eles [yanomamis] há muito tempo.

MidiaNews – Recentemente, o Jornal Nacional revelou o caso de crianças que morreram sem assistência adequada em Mato Grosso. Como está a saúde indígena no Estado?

Eliane Xunakalo – Está igual a nível nacional. Precisa de investimento, tem problemas como falta de combustíveis e outras coisas que deveriam ser mínimas. Todas as questões de competências também, porque não é só o Governo Federal que é responsável pela saúde. Tem os municípios, os estados, que por muitas vezes não conseguem atender a gente também.

E a gente acredita que quem sabe agora a gente possa juntar esforços para ter uma atenção com nossos povos que estão muito distantes da cidade, que precisam de atenção, médicos, de equipe com recursos disponíveis. Porque não é só colocar uma equipe. É colocar condições de trabalho para que essa equipe possa trabalhar.

MidiaNews – Quais etnias estão mais vulneráveis em relação à saúde em Mato Grosso?

Eliane Xunakalo – Não tenho dados. Eu sei que a gente tem vários problemas, como hipertensão, diabetes… Alguns povos têm desnutrição, mas não por questão de alimento… Tem que ser alimento com qualidade, tem que investir em agricultura familiar e realmente fortalecer o que os povos plantam.

MidiaNews – Uma das críticas que sempre foram feitas à saúde indígena é em relação ao sucateamento dos DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas). Qual a estrutura dos DSEIs atualmente em Mato Grosso?

Eliane Xunakalo – Eles têm uma estrutura administrativa, de chão, e quando a gente fala que está sucateado, é porque não tem orçamento.

Muitos dos povos falam que não têm remédio, que faltam ações multidisciplinares. Falta também que o Estado de Mato Grosso e os municípios estejam juntos porque a saúde requer ações em conjunto. Não é uma caixinha separada, não é só o Governo Federal. O Estado também tem responsabilidade, até porque o SUS é um sistema.

MidiaNews – Muita gente diz que terras indígenas são um obstáculo para o desenvolvimento do Estado. Como a senhora enxerga esse tipo de declaração?

Porque se você perguntar quais são esses direitos, não vão saber responder. A gente tem direito a viver do nosso modo tradicional. Essas muitas terras é o que mantém o ar limpo, é que o mantém os rios, que estão secando, é o que ainda mantém o equilíbrio

Eliane Xunakalo – A gente não é obstáculo. No Mundo, os povos indígenas são 5%, mas a proteção da biodiversidade feita por nós, povos indigenas, é de 82%. Em Mato Grosso é só olhar as imagens de satélite e ver quais são as terras que ainda estão com biomas em pé. São dos povos indígenas, das populações tradicionais.

Então, nós não somos obstáculo, temos nosso modo de viver e a gente contribui para a humanidade. Quando faltar água, quando não tiver ar puro…O desenvolvimento depende muito de saber o que é desenvolver para as pessoas. É acumular dinheiro? É atropelar as outras pessoas? Ou é respeitar o modo e o tempo das outras pessoas, dos outros povos. Acredito que há muito preconceito, muito tabu. Nós, povos indígenas de Mato Grosso, somos 43, estamos em 62 municípios, e a gente ainda é invisibilizado.

Estamos em muitos espaços na cidade, estamos constantemente ao lado da população, mas a população não nos conhece. E estamos aqui há muito tempo. E não conhecem as contribuições.

Então, é necessário mudar essa visão. E só muda quando a gente permite ver as outras realidades. Eu vejo que a gente não é obstáculo, não. Pelo contrário, a gente é a solução para vários problemas. É só a gente tirar esse egocentrismo.

MidiaNews – Um discurso que sempre foi presente, mas que recentemente ganhou mais força foi de que os indígenas têm terras e direitos demais no Brasil. Como a senhora reage quando se depara com esse tipo de discurso?

Eliane Xunakalo – Eu reajo de forma negativa. Porque se você perguntar quais são esses direitos, não vão saber responder. A gente tem direito a viver do nosso modo tradicional. Essas muitas terras é o que mantém o ar limpo, é que o mantém os rios, que estão secando, é o que ainda mantém o equilíbrio.

Eu acredito que não haja muita terra para poucos indígenas. As terras são a nossa casa. É dali que a gente tira o alimento, é ali que a gente vive. A gente não consegue viver sem nossos territórios.

É igual você comprar um apartamento e ter que justificar a todo momento por que você tem um apartamento. Eu vejo que o [ex-presidente Jair] Bolsonaro reforçou um preconceito que já existe, a invadir as nossas terras, matar a nossa gente.

Porque o que está acontecendo com essas crianças, que está todo mundo chocado, e a gente já denunciou há muito tempo, é por conta de discursos dessa natureza. As pessoas não compreendem nosso modo de vida e não fazem questão.

MidiaNews – Além do preconceito que a senhora citou, acha que existe ódio contra os povos indígenas no Brasil? 

Eliane Xunakalo – Existe ódio sim, por várias questões. Por causa do nosso território, por causa do que há nele, minérios. Infelizmente, o ódio é provocado pela cobiça de ser rico, ter posses, e de não aceitar que nesses territórios tenham um povo que, talvez possa parecer pobre aos olhos de quem tem ódio, mas ele é rico em sua liberdade, é rico em sua cultura.

E por não poder explorar [a terra], esse ódio é aumentado, é disseminado contra a gente. E esse preconceito, por não nos conhecer, vira esse ódio, mas é muito incentivado pela cobiça.

MidiaNews – Uma das críticas feitas ao governo anterior foi a nomeação de pessoas na Funai que não tinham compromisso com a causa. Como a senhora resumiria a atuação da Funai nos últimos quatro anos?

Eliane Xunakalo – Ela deixou de cumprir o seu papel. Porque o papel não é tutela e nem assistencialismo, é papel técnico mesmo. Então, a Funai seguiu alguns interesses, que não são interesses dos povos indígenas.

E com isso não teve investimneto para que ela cumprisse sua função institucional, de ser um orgão que ajudasse a promover políticas indigenistas a nível de Brasil. Então, foram quatro anos de retrocesso. Funai já estava em um processo de sucateamento. E a situação só piorou.

Agora os problemas estão aparentes porque está tendo visibilidade.

A gente espera que esse novo Governo haja mais recursos, que a gente possa participar da construção de políticas públicas também. Porque tem que partir dos povos indígenas, e não de cima para baixo. E também que o Estado pode participar. Por exemplo, a gente está vendo vários estados constituindo secretarias estaduais de assuntos indígenas, estados que têm populações indígenas.

Mato Grosso é o terceiro Estado com maior número de povos na Amazônia, e tem uma superintendência que é comandada por um não indígena. Por que não colocar um indígena? Tem muita gente competente que conhece a realidade. E não é só colocar um indígena, é dar condições de trabalho também.

Então, a gente está vendo isso no Pará, no Ceará, no Tocantins, e a gente precisa que o governador também tenha sensibilidade de sentar e conversar conosco para que a gente possa realmente ajudar os 43 povos indígenas, e nao só um ou outro.

MidiaNews – Recentemente o deputado Gilberto Cattani disse que uma das formas de evitar o que aconteceu com os yanomamis seria implantar nas reservas o mesmo modelo de produção que existe nos parecis, que têm parceria com produtores de soja. O que a senhora acha desta proposta?

Eliane Xunakalo – Primeiro que o deputado não é indígena. Segundo que o deputado não conhece a realidade dos povos indígenas de Mato Grosso. Aqui nós temos 43 povos indígenas, com diferentes realidades e especialmente com contatos diferentes. Ele não tem que achar nada. Ele tem que perguntar para os povos indígenas o que eles querem. O que queremos com nossa história?

O que aconteceu com os yanomamis é culpa do garimpo, incentivado por pessoas que pensam assim. Por quê? Eles não têm alimento porque está contaminado seus rios, o solo está contaminado e eles estão doentes.

Então, não é fome por fome. É porque eles não têm condições de viver sua vida como eles querem viver: tradicionalmente. A gente tem que respeitar. A gente não pode impor um modelo econômico para todos os povos indígenas, porque não somos iguais, somos diferentes.

E nós temos que ser respeitados sobre as decisões acerca do nosso território. Se eles deicidiram plantar soja, a gente respeita, mas isso não significa que os outros povos queiram seguir esse caminho econômico.

Então, a gente tem economias indígenas de vários tipos que precisam ser respeitadas e um deputado do Estado precisa entender isso: nós não somos iguais, nós temos as nossas diferenças culturais, e as nossas organizações sociais, nosso modo de vida, e a nossa vontade de como queremos viver dentro do nosso territorio precisa ser respeitado. O que aconteceu lá não pode ser usado para adentrar em nosso território e impor um tipo de economia que a maioria não quer.

MidiaNews – Há mais de 20 anos, a PF realiza operações de desintrusão na reserva Sararé, na região de Pontes e Lacerda, só que os garimpeiros sempre retornam. Por que é tão difícil acabar com garimpos em reservas indígenas?

Eliane Xunakalo – Não adianta só ir lá, tirar, e não tiver realmente uma responsabilização deles. Então, que sirva de pedagogia e aprendizado. A Polícia Federal vai hoje, amanhã eles voltam novamente porque eles saem impunes.

Então, é necessário uma rede de proteção, é necessário também que os órgãos ajam porque não adianta só multar. Essas multas que às vezes nem são cobradas, e muitas vezes eles não são presos.

Então, parece que compensa voltar. Não tem punição. Então, que as ações sejam mais efetivas, que os garimpeiros realmente sejam retirados e que não voltem. Para isso, é necessário que o Estado pese a mão.

MidiaNews – A senhora acha que o fato de ser difícil cobrar políticas pró-indígenas tem a ver com Mato Grosso ser um estado agrícola?

Eliane Xunakalo – Eu acredito que tenha a ver com a nossa invisibilidade. Eu acredito que as economias possam muito bem sobreviver, mas é necessário fomento às economias sustentáveis. Nós somos, por natureza, a maioria dos indígenas, eles fazem agricultura familiar.

Precisa de incentivo, precisa de fomento para que isso aconteça. Então, a gente está nas cadeias e elas precisam de investimento, e enquanto não tiver isso, vai ser muito difícil ter políticas públicas não só para os indígenas.

Não é só a gente que é invisivel aqui no Estado. É um Estado de diversidades de povos, a gente também tem quilombolas que são invisiveis, que tem muita coisa em comum com a gente, ribeirinhos, povos tradicionais. Enquanto os nobres deputados não nos olharem, não virem para o chão da aldeia, para o chão do quilombo e conhecerem realmente nossa realidade… Porque nós temos propostas, nós sabemos as soluções para os nossos problemas.

Porque as políticas públicas partem do que a gente demanda, das nossas realidades, e não pela cabeça dos que os outros acham que é certo para a gente. Eles não tem que achar, eles tem que nos ouvir e considerar realmente.

MidiaNews – A senhora foi candidata a deputada estadual em 2022. O que falta para que os indígenas tenham representantes com mandato na política mato-grossense?

Eliane Xunakalo – Primeiro que Mato Grosso é um Estado bem complicado. Eu acho muito difícil ter um representante na Casa Legislativa. Porque é um Estado conservador, de direita, que não nos reconhece como parte dela. Então, é uma sociedade que precisa viver um processo de reconhecimento dos próprios povos.

O que falta para a gente é visibilidade. Entenderem que a gente pode contribuir muito na Assembleia, entender que a Assembleia precisa ter nossos traços. As pessoas que estão lá não representam toda a população mato-grossense.

Tem negro como deputado? Tem indígena como deputado? Tem ribeirinho como deputado? Tem gente da favela, da periferia como deputado? Só tem gente que tem dinheiro ali, na sua maioria. E a sociedade não é composta só por aquelas pessoas.

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Fonte:    midianews.com.br


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