Viver em Cuba é uma festa inenarrável, disse alguns dias atrás o presidente Miguel Díaz-Canel, parafraseando um conhecido poema do escritor José Lezama Lima, um dos maiores intelectuais cubanos de todos os tempos. Uma frase que, nas circunstâncias políticas atuais, a oposição e boa parte do povo sentem carregada, ao mesmo tempo, de falsidade e cinismo.
Quando Lezama Lima escreveu esse poema em 1941, Cuba era uma das nações mais ricas da América Latina e, segundo informes das Nações Unidas, líder mundial em muitos aspectos do desenvolvimento financeiro, econômico e social. Um contexto bem diferente do que se vê agora pelas ruas da ilha.
Um ano depois dos maciços e surpreendentes protestos populares de 11 de julho de 2021, o panorama em Cuba é simplesmente desolador. Diante de sua incompetência financeira, o governo teve que renegociar os pagamentos da dívida pública com todos os credores. Já em novembro, devido ao “reordenamento econômico e financeiro”, a inflação alcançava 69,5%, segundo cifras do próprio governo, colocando Cuba entre os sete países de maior inflação.
Miséria, repressão e êxodo
O desabastecimento de produtos alimentícios e medicamentos é cada vez maior. Todo o sistema energético nacional está em bancarrota, trazendo de volta os assim chamados alumbrones (“acendões) – pois os cubanos passam a maior parte do tempo sem energia elétrica.
Tudo se complica mais com a prolongada crise da Venezuela, que obrigou o presidente Nicolás Maduro a diminuir a cota diária de petróleo comprometida com Cuba; com a contração econômica mundial provocada pela invasão russa (que Díaz-Canel e a propaganda do regime denominam “operação especial na Ucrânia”, como Vladimir Putin ordenou a seus aliados); e com as limitações de gestão internacional derivadas do embargo financeiro pelos Estados Unidos.
Socialmente, a repressão contra qualquer tipo de descontentamento se estabeleceu em lei com um novo Código Penal criminalizando até mesmo as opiniões em redes sociais. São mais estruturadas e fortes do que em outras épocas as detenções arbitrárias; os processos legais sem garantias judiciais; a proibição de saída do país como castigo para todo tipo de dissidência, sob o rótulo de “regulação migratória”; assim como as aniquilações midiáticas, através dos meios de imprensa estatais, das mais importantes figuras da oposição, inclusive gente simples do povo, que recorreu às redes sociais para expressar seu desespero.
Portanto ninguém deveria estranhar que essa situação haja provocado uma onda de emigração que supera os maiores êxodos históricos de Cuba (Camarioca nos anos 1960, Mariel em 1980, o Maleconazo em 1994). Segundo dados das autoridades de migração americanas, desde outubro de 2021 até agora chegaram 146.389 cubanos aos EUA. E note-se que o êxodo também se dá para outras nações da América Latina e da Europa, resultando numa cifra real consideravelmente maior
Triunfalismo x descontentamento social
A ineficácia governamental em cumprir as promessas feitas ao povo e o descomunal erro do presidente de reprimir abertamente as manifestações de descontentamento popular provocaram uma mudança radical da consciência social dos cubanos, na ilha e no exílio.
Quando, em 11 de julho de 2021, eles demonstraram ter perdido o medo de levantar a voz contra um sistema político que demostrara sua inoperância ao longo de seis décadas, só restou ao governo de Díaz Canel e Raúl Castro a opção de tratar com mão de ferro quem se opusesse.
Assim, encarcerou com condenações irracionais centenas de jovens que participaram desses protestos, chegando-se a 1.235 presos políticos, segundo a ONG Prisoners Defenders; obrigou a emigrarem os novos nomes da oposição política ou intelectual (o dramaturgo Yunior García, líder da plataforma oposicionista Archipiélago, a jornalista Mónica Baró, a ativista Saily González, a poeta Katherine Bisquet, o artista plástico Hamlet Lavastida, entre outros).
Além disso, Canel e Castro impediram o ingresso em Cuba e condenaram ao exílio forçado opositores destacados, como a jornalista Karla Pérez, a curadora de arte e ativista Anamely Ramos ou, há apenas alguns dias, a acadêmica Omara Ruiz Urquiola, lançando uma campanha nacional para desacreditar todas essas figuras, fabricando falsidades como apresentá-las como mercenárias pagas por Washington.
Lamentavelmente, tais campanhas são ecoadas internacionalmente, no assim chamado “mundo livre”, por numerosas instituições, órgãos, associações e personalidades de um setor extremista da esquerda que defende ditaduras como as de Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Tampouco os organismos internacionais responsáveis pela defesa dos direitos humanos mostram firmeza perante o triunfalismo e a manipulação da propaganda de Havana sobre o inquestionável desastre nacional. Diante do Escritório da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em Bruxelas, o ativista e cientista cubano Ariel Ruiz Urquiola mantém uma greve de fome e sede, exigindo que a instituição se pronuncie sobre as numerosas violações perpetradas pelo governo contra ele, sua irmã Omara Ruiz Urquiola e dezenas de oposicionistas.
Até onde o povo cubano aguentará?
A morte, alguns dias atrás, de Luis Alberto Rodríguez López-Callejas, considerado o “czar militar” da ditadura e gestor do poderoso monopólio financeiro Gaesa, convenientemente concentra agora mais poder econômico em umas poucas mãos, todas militares e próximas à família de Raúl Castro. Curiosamente, após essa morte repentina, aos apenas 62 anos, o governo passa a anunciar o desaparecimento de estruturas econômicas e de comércio internacional que impediam essa concentração de poder no país insular.
E diversos analistas se espantam com o anúncio de que importantes negócios, zonas turísticas e estruturas econômicas vão ser quase totalmente geridos por empresas estrangeiras. Esse é o caso do polo turístico de Cayo Largo que, a partir desta temporada de inverno, estará em mãos da cadeia Blue Diamond Resorts, em conjunto com o grupo hoteleiro cubano Gran Caribe, também gerenciado pela cúpula militar raulista.
As perguntas chovem: serão essas cessões um sinal de admissão da incompetência governamental para gerir esses negócios? Até que ponto as riquezas obtidas beneficiarão o povo? O país estará sendo vendido, como sucedeu em épocas anteriores com outras ditaduras da América Latina?
E a mais importante de todas as perguntas, que é justamente a que mais parece preocupar Díaz-Canel, a julgar pelos preparativos das forças militares repressivas às vésperas deste 11 de julho: o povo cubano seguirá suportando tanta fome, repressão, falta de liberdade e desesperança?
Fonte: dw.com