Em meio a compromissos internacionais e arranjos ministeriais para o futuro do governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá de decidir ao longo das duas próximas semanas quem será o novo procurador-geral da República. O mandato de Augusto Aras, que ocupa a chefia da PGR atualmente, se encerra em 26 de setembro.
De acordo com o jornal O Globo, Lula quer evitar um “mandato-tampão” e, por isso, sinaliza com a escolha do novo chefe do Ministério Público Federal será feita nos próximos dias. Caso não eleja alguém até a saída de Aras, quem assume o cargo interinamente é Elizeta Ramos, atual vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF).
Lista tríplice
A indefinição não se dá apenas pelo nome do futuro PGR, mas também pela maneira como ele será escolhido. A Constituição define a prerrogativa de escolha para o chefe do Executivo. Ao longo das duas últimas décadas, no entanto, convencionou-se utilizar como norte a lista tríplice formulada por cerca de 1200 procuradores federais vinculados a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), instituição privada que representa os procuradores federais.
Lula tem dito que, ao contrário do que fez em seus outros mandatos no Palácio do Planalto, não pretende seguir a lista tríplice. Em 2003, assim que assumiu governo, o petista indiciou Claudio Fonteles, o mais votado entre os procuradores federais da ANPR. A decisão foi elogiada por setores do judiciário e do próprio MPF, que entendiam a proposta como forma de dar autonomia ao órgão.
Além disso, o petista se diferenciava do que Fernando Henrique Cardoso (PSDB) havia feito na presidência entre 1995 e 2002, quando reconduziu o procurador-geral Geraldo Brindeiro por quatro mandatos consecutivos. Pouco ativo nas denúncias contra FHC, Brindeiro entrou para a história como “engavetador-geral da República”.
Escolha presidencial
De volta ao poder 20 anos depois desde sua primeira experiência no Planalto, Lula deve mudar de estratégia. “Única coisa que tenho certeza é que eu não vou escolher mais lista tríplice. E o Ministério Público Federal tem que saber que eu não vou escolher por irresponsabilidade da força tarefa do Paraná que foi moleque, que prejudicou a imagem do Ministério Público Federal, que quase destruiu a imagem da seriedade do Ministério Público”, disse ele em março deste ano ao site Brasil 247.
Fabio Kerche, professor do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), acredita que Lula está agindo corretamente. “Como a escolha de 1200 procuradores federais pode ser democrática? São burocratas que prestaram concurso em algum momento e querem ditar regra. Além disso, essa lista não abarca todo o Ministério Público, já que não incorpora o Ministério Público do Trabalho, o Militar e o do Distrito Federal”, disse ele à DW Brasil.
“Lula deveria prestigiar e acatar um dos nomes que figure na lista tríplice”, rebateu à DW Brasil Claudio Fonteles, que atuou como PGR entre 2003 e 2005. “Ela não significa realidade corporativista, mas efetivo mecanismo de participação democrática dentro do Ministério Público federal. O fato de a elaboração da lista tríplice ser cometida aos membros do Ministério Público federal não trai qualquer exclusivismo”, afirmou.
Fonteles complementa. “O Ministério Público da União contempla o Ministério Público federal, no âmbito de suas atribuições funcionais, em espaço de não especificidade. Os demais ramos, no Trabalho, Militar e do Distrito Federal, são reconhecidos por especificidade própria e restrita.”
Em abril deste ano, Kerche foi coautor de um artigo na Folha de S.Paulo criticando a lista tríplice. O texto, redigido em parceria com Rogério Arantes, professor de ciência política da Universidade de São Paulo, afirmava que transferir a responsabilidade para uma fração dos procuradores não é democrático ou garantia de qualidade no eleito. Para Fonteles, deixar tudo nas mãos do presidente também não é uma boa saída.
“Mantido o quadro atual, com o Presidente da República dotado de poder absoluto à escolha da chefia da Instituição que, todavia, não faz parte do organograma do Poder Executivo. Instituição, portanto, que não é governo, mas se vocaciona à defesa e ao controle dos atos governamentais”, ressaltou o ex-PGR.
Kerche concorda que a definição presidencial pode incorrer em erros, mas faz uma ressalva: o nome definido pelo chefe do Executivo é sabatinado pelo Senado e isso, em termos, garante maior legitimidade.
“O presidente foi eleito pela sociedade, assim como os senadores. É o voto popular, da sociedade, totalmente diferente da lista tríplice. Essa foi a forma que o constituinte encontrou para minimizar as pressões de todos os lados no cargo. Se nós olharmos a história, até 1988 o PGR era um cargo de livre nomeação e demissão do presidente. Não havia controle”, explica o docente.
Claudio Fonteles acredita que a lista tríplice deveria tornar-se lei na definição do chefe do MPF, ideia que Kerche reprova. Ambos, no entanto, defendem propostas similares de mudança na atuação do procurador-geral, como fim da possibilidade de recondução, mandato único, com duração de 3 a 5 anos e impedimento ao exercício de qualquer outro cargo público durante o desempenho do mandato com PGR ou após a conclusão desse mandato.
“Aras agradou quem tinha a caneta”
Augusto Aras chegou ao posto de Procurador-Geral da República escolhido por Bolsonaro em 2019. Ele também não constava na lista tríplice da ANPR. Desde então, ele notabilizou-se pela proximidade com as pautas do ex-presidente, como mostrou levantamento feito pelo jornal O Globo em fevereiro deste ano.
Segundo a publicação, das 184 ações analisadas pela publicação que envolviam Bolsonaro e seus familiares entre 2019 e 2023, em 134 oportunidades, ou 72%, o procurador-geral defendeu a extinção ou arquivamento do processo. Ainda de acordo com os dados, as manifestações de Augusto Aras foram favoráveis à família Bolsonaro em 95% dos casos.
“Foi uma péssima gestão. Aras teve uma conduta deplorável, dotada de completa omissão e submissão. A Constituição é clara ao dizer que o Ministério Público existe para defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais. O que Aras fez quando Bolsonaro incitou seus correligionários contra a democracia? Absolutamente nada”, criticou Fonteles.
Aras também foi duramente criticado por sua atuação após a CPI da Covid. Em julho do ano passado, a PGR pediu arquivamento de sete das dez acusações contra Bolsonaro, que incluíam a propagação do coronavírus, o atraso na compra de vacinas, o incentivo aos atos de aglomeração e prevaricação no caso do contrato do imunizante Covaxin. Na ocasião, o jurista Pedro Serrano, professor da PUC-SP, afirmou à DW Brasil ter havido um “pacto político entre o chefe do Executivo e a PGR.”
“Aras jogou como todos os outros procuradores: tentou agradar quem tinha a caneta. O problema é que quem tinha a caneta era um antidemocrata”, pondera Kerche.
Assim que Lula ganhou as eleições, Aras tem buscado se distanciar do bolsonarismo para construir pontes com o PT. Sua principal estratégia é dizer que atuou para desmantelar a Lava Jato, operação tocada pelo MPF de Curitiba que acusou e ajudou a prender o petista em 2018. Além disso, a PGR denunciou manifestantes golpistas que participaram dos atos de 8 de janeiro.
“Quer dizer que Aras agora é de esquerda? Claro que não. Ele só está buscando uma forma de permanecer no cargo. A caneta está na mão do Lula e ele sabe disso”, complementa Kerche, que finaliza com uma ponderação.
“A escolha do PGR é complicada porque, no Brasil, o cargo tem muito poder. Se nós olharmos para o [Rodrigo] Janot [procurador-geral entre 2013 e 2017], por exemplo que denunciou Lula, Dilma e outros políticos e ajudou a criar uma crise política que, de certa forma, nos jogou no bolsonarismo. É uma autonomia perigosa e que, a meu ver, precisa ter algum tipo de freio, porque uma ação incorreta pode gerar uma instabilidade grande à democracia.”
Fonte: dw.com