Leitor voraz, insônia e delação: a vida de Ronnie Lessa na cadeia

Leitor voraz, insônia e delação: a vida de Ronnie Lessa na cadeia
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Preso desde 2019 pelo assassinato de Marielle Franco, Ronnie Lessa passou cinco anos no sistema federal e foi transferido para Tremembé (SP)

São Paulo – O matador de aluguel Ronnie Lessa está tranquilo. Vestido de uniforme azul, estampado com o número de identificação 33 e a frase “Interno – Sistema Penitenciário Federal”, o ex-policial militar apruma os óculos, ajusta a postura na cadeira e começa a descrever como executou a tiros a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes em troca de loteamentos clandestinos na zona oeste do Rio de Janeiro.

Livre de algemas, Ronnie Lessa usa as duas mãos para gesticular enquanto explica por que concordou em apertar o gatilho contra Marielle. “Ninguém recebe uma proposta de 10 milhões de dólares simplesmente para matar uma pessoa”, diz o miliciano, como se narrasse uma oferta de emprego irrecusável. “A gente tá falando de muita grana.”

O depoimento está gravado em vídeo. Os detalhes foram relatados na Superintendência da Polícia Federal (PF) no Mato Grosso do Sul, em 9 de agosto de 2023. Até aquele momento, Ronnie Lessa já estava recolhido há mais de 4 anos em presídio federal, onde os presos são supervigiados, vivem em isolamento e só têm direito a uma hora de banho de sol por dia

Em troca de pena mais leve, o miliciano concordou em fazer a confissão, esmiuçar o passo a passo do planejamento e delatar quem eram os mandantes do assassinato de Marielle. O acordo de colaboração premiada, homologado no Superior Tribunal Federal (STF), prevê 18 anos de prisão em regime fechado.

Outro benefício obtido pelo ex-PM foi cumprir sua punição no sistema estadual. Dez meses após a primeira oitiva, em 20 de junho de 2024, ele foi transferido para a Penitenciária 1 de Tremembé, no interior de São Paulo, cadeia mais perto da família

Vida no crime

Ronnie Lessa, de 53 anos, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, é casado e tem três filhos. Ex-sargento do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), a tropa de elite da PM do Rio, o pistoleiro responde à acusação de integrar o Escritório do Crime, milícia que domina áreas de Jacarepaguá.

Na sua ficha corrida, também constam investigações por envolvimento com jogo do bicho, tráfico internacional de armas e outros homicídios – incluindo supostos casos de “eliminação de concorrentes”.

Em 2009, quando ainda estava em atividade, sofreu atentado à bomba, instalada embaixo do seu carro, na saída do batalhão. O episódio, que marca sua aposentadoria da PM, lhe rendeu a amputação da perna esquerda, do joelho para baixo, e o vulgo de “Perneta”. Na cadeia, anda com auxílio de muleta.

O miliciano deu entrada no sistema federal em 28 de março de 2019, assim que foi preso pelo caso Marielle. Desde então, o assassino confesso da vereadora passou por Mossoró (RN), Porto Velho (RO) e Campo Grande (MS), onde estava recluso antes de seguir para São Paulo, com conduta disciplinar classificada como “boa”.

Na última prisão de segurança máxima, Ronnie Lessa foi contemporâneo do iraniano Farhad Marvizi, acusado de chefiar grupo de extermínio formado por policiais militares no Nordeste, e de integrantes do Comando Vermelho (CV), a maior facção criminosa do Rio de Janeiro.

Depressão de Ronnie Lessa na cadeia

Os primeiros meses na cadeia foram os mais difíceis, segundo relatou a agentes penais. Em janeiro de 2021, o miliciano estava deprimido. Aos psicólogos apresentou discurso “choroso”, queixou-se de insônia e admitiu que já havia idealizado cometer suicídio. Foi na prisão que começou a fazer uso de remédios psiquiátricos.

“Hoje, como forma de enfrentamento ao cárcere, faz leitura diária da Bíblia e está escrevendo um livro”, diz trecho do seu plano de individualização de pena, obtido pelo Metrópoles, em anotação feita em dezembro de 2022. Quando voltar às ruas, o plano é virar fazendeiro.

Na prisão, Ronnie Lessa fez curso a distância de agropecuária, mecânica geral e auxiliar administrativo. Também estudou espanhol e se tornou um leitor voraz, empilhando pedidos na Justiça para reduzir a sua pena por causa dessas atividades.

A lista de obras resenhadas pelo pistoleiro (veja acima) inclui best sellers, livros de autoajuda reflexões sobre religião, filosofia oriental e clássicos da literatura brasileira – a exemplo de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892-1953), e A Morte de Quincas Berro D’Água, de Jorge Amado (1912-2001).

Leitura e crítica social

Capaz de expressões como “fechado em sua ignorância”, “esmiuçadas análises” e “método divinatório”, Ronnie Lessa costuma ter o vocabulário elogiado e as resenhas bem recebidas pelos avaliadores. Críticas sociais e referências à própria sensibilidade também aparecem com frequência.

Um dos exemplos está na análise que o miliciano, que se declara evangélico, faz da obra Deus, Um Delírio, do cientista britânico Richard Dawkins, lida em junho de 2023. “Um livro um tanto quanto interessante. Um verdadeiro termômetro, ou até mesmo um divisor de águas, para alguns fundamentalistas que insistem em praticar a fé cega, sem consciência e sem limites.”

O assassino também não economiza na tinta ao resenhar Vidas Secas, ícone da literatura brasileira, que conta a história de quatro sertanejos no início do século 20. Na avaliação, o preso elogia Graciliano Ramos e destaca o “realismo” do autor

“Retrata com originalidade um pesadelo que é negligenciado por autoridades de todas as esferas, políticos que fecham os olhos para os verdadeiros problemas sociais, como a seca, e priorizam a visibilidade em programas paliativos”, escreveu.

Preso em São Paulo

O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) foi contrário à transferência de Ronnie Lessa para uma cadeia do estado. Em parecer, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) afirmou que o Complexo Penitenciário de Tremembé, conhecido por receber condenados por crimes de grande repercussão, não é de segurança máxima.

No dia da transferência, o Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp) também denunciou um suposto “salve” do Primeiro Comando da Capital (PCC), que é rival de milicianos, para matar o executor de Marielle Franco.

Inicialmente, Ronnie Lessa ficou isolado em uma cela de 9 m². Nesta semana, a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou a favor de manter o monitoramento das comunicações do preso enquanto ele estiver na cadeia paulista.


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