De barraca de lona que serve de lar improvisado, Germano Alziro enxerga os seguranças contratados por fazendeiros em Douradina, em Mato Grosso do Sul, ostentarem armas. Ele é uma das jovens lideranças do povo guarani-kaiowá que busca voltar às terras que eram ocupadas tradicionalmente pelos indígenas.
À espera da demarcação formal desde 2011, cerca de 120 indígenas decidiram em 14 de julho acampar num ponto do território reivindicado. A resposta dos fazendeiros foi violenta: fogos de artifício e tiros foram disparados contra o grupo.
“Estamos esperando há muito tempo pelo Estado, não aguentamos mais, então resolvemos fazer a autodemarcação. A situação aqui está crítica, muita violência, não estamos seguros”, diz Alziro, estudante de mestrado na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
Após as notícias dos primeiros confrontos no local, a Força Nacional foi enviada, mas se retirou na sequência. Foi nessa janela de ausência que o quadro se agravou. Em 4 de agosto, jovens indígenas que estavam à frente do grupo para protegerem idosos e crianças foram baleados. Pelo menos 11 pessoas ficaram gravemente feridas. Um deles continua com a bala alojada na cabeça.
Para quem acompanha o histórico dos Guarani e Kaiowá de perto, como Matias Rempel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não se trata de um mero conflito.
“Existe um massacre que, pela dimensão histórica e temporal, é um processo de genocídio. São atores e interesses muito bem identificados que imprimem uma violência extrema contra um povo”, diz Rempel à DW.
Expulsos da terra
Os Guarani e Kaiowá vivem atualmente no sul do Mato Grosso do Sul e parte do Paraguai. A cobiça sobre o território deles se acirrou a partir da Guerra do Paraguai, em 1864, com a fixação de soldados na região.
A situação se agravou quando o Estado brasileiro passou a executar planos para ocupar as terras ditas “vazias”, no começo da década de 1910. De 1940 adiante, a expulsão dos indígenas se tornou recorrente e eles passaram a ser confinados em pequenas reservas. Foi nessa época que foi criada a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand), que atraiu muitos fazendeiros ao estado para expandir a fronteira agrícola no país.
Enquanto o agronegócio florescia, com plantio de cana-de-açúcar, soja, milho e gado, cerca de 40 mil indígenas foram obrigados a se limitar em fragmentos de terra dispersos. Por décadas, eles foram usados como mão-de-obra análoga à escravidão no campo e em projetos de infraestrutura, apontam estudos do Cimi.
“Os fazendeiros têm que entender que o território é ancestral. As primeiras pegadas são do povo guarani, a colonização chegou há pouco tempo. Eles invadiram nossas terras e têm que ter a decência de reconhecer que o território é indigena”, afirma Natanael Vilharva Caceres, representante do Movimento Guarani Kaiowá e historiador.
Demora da demarcação
O território em disputa é a Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica. Com 121 quilômetros quadrados, ela está espalhada pelas cidades de Itaporã e Douradina. Segundo Alziro, liderança indígena e geógrafo, quatro fazendas hoje estão instaladas na área.
No começo dos anos 2000, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Funai, começou os estudos técnicos de identificação e delimitação da TI. A medida era uma resposta ao compromisso firmado com o Ministério Público Federal (MPF) para reconhecer os territórios guarani-kaiowá. A delimitação foi feita em 2011, mas o processo administrativo foi suspenso por decisões judiciais a favor dos fazendeiros.
“Falta empenho do Estado brasileiro para resolver essa questão fundiária no Mato Grosso do Sul. É notório que o agronegócio tem uma força política e econômica que domina o Congresso”, analisa Diógenes Cariaga, professor da UEMS que acompanha o cenário.
Na sala de aula, Cariaga ouve relatos diretamente de vários estudantes indígenas que estão acampados no pontos que tentam retomar. “As famílias são muito impactadas pela violência que tem esta dimensão histórica provocada pelo Estado, que privatizou as terras com presença dos indígenas”, complementa.
A Defensoria Pública da União condenou a violência e solicitou ao governo federal a garantia da segurança dos indígenas. O comandante da equipe da Força Nacional que estava à frente da operação no dia do ataque mais severo foi afastado. Ele é acusado pelo movimento indígena de espalhar desinformação e inflamar os fazendeiros.
Fome e medo
De frente para a barraca onde Germano Alziro está com a família, um outro acampamento está montado. São os seguranças do fazendeiros, que os indígenas chamam de jagunços.
Diversas lideranças ouvidas pela DW narram o terror psicológico e o medo de morrer que vivenciam. Todas as noites, mais de 50 caminhonetes circulam em alta velocidade pelas proximidades, acendem e apagam os faróis, cantam pneus e seus ocupantes empunham armas.
Dos 121 quilômetros quadrados já reconhecidos como TI Panambi-Lagoa Rica, pequenos trechos abrigam sete acampamentos dos indígenas. Eles vivem em situação precária, não têm espaço para plantar, são proibidos de caçar e pescar pelos jagunços.
“Nossa comida está acabando. Já tem pessoas passando fome. Não conseguimos ir na cidade vender nossos produtos, comprar ou receber benefícios porque somos hostilizados, perseguidos. Tem comércio que nem deixa a gente entrar”, conta Alziro.
Uma comitiva oficial com representantes da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas chegou a visitar o local da retomada. Nesta sexta-feira (09/08), um grupo de lideranças indígenas foi a Brasília buscar apoio para finalizar a demarcação.
“Nós tínhamos a expectativa de que o governo Lula iria resolver a demarcação. Ele disse que isso seria uma prioridade. Mas não houve avanço”, critica Caceres.
Fonte: dw.com