O Executivo francês sobreviveu nesta segunda-feira (20/03) a duas moções de censura apresentadas depois de o governo ter decidido, na última quinta-feira, aprovar uma controversa reforma da previdência através de um mecanismo constitucional que lhe permite fazê-lo sem o voto do Legislativo.
A primeira moção recebeu amplo apoio e ficou a apenas nove votos da aprovação na Assembleia Nacional. Defendida pelo centrista Charles de Courson, obteve 278 votos dos 287 necessários para derrubar a primeira-ministra Élisabeth Borne e, consequentemente, a polêmica reforma da previdência defendida pelo presidente Emmanuel Macron.
A segunda moção de censura, apresentada pelo partido de extrema direita Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, obteve apenas 94 dos 287 votos necessários. No entanto, foram cinco votos a mais do que o esperado – a expectativa era de que apenas os 89 deputados do RN votassem a favor.
Com a rejeição das duas moções de censura, considera-se aprovada a reforma, precipitando a França numa crise social ainda maior. Para que entrem em vigor, no entanto, as novas regras ainda precisam aguardar pela resolução de recursos perante o Conselho Constitucional, anunciados por vários grupos da oposição.
A reforma da Previdência proposta por Macron, que aumenta a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos, vem sendo contestada em amplos protestos e greves nas últimas semanas, com reflexos no cotidiano de milhões de franceses.
Controverso Artigo 49.3
Na quinta-feira, a primeira-ministra Elisabeth Borne se dirigiu à Assembleia Nacional para anunciar que, sob o Artigo 49.3 da Constituição francesa, a polêmica reforma previdenciária seria aprovada sem votação dos deputados.
O Artigo 49.3 permite que o primeiro-ministro aja unilateralmente. Desta forma, a única maneira de impedir um projeto de lei aprovado sob essa regra seria derrubar o governo. Os membros da Assembleia Nacional podem reagir, apresentando e votando uma moção de desconfiança. Se aprovada, ela resultaria no arquivamento do projeto, na renúncia do governo e na convocação de novas eleições.
A reforma foi aprovada no Senado na terça-feira por 193 votos a favor e 114 contra, mas o governo estava inseguro se teria maioria na Assembleia Nacional, a câmara baixa do Parlamento francês.
A decisão de recorrer a esse mecanismo, ao invés de optar por uma votação que era considerada arriscada, foi tomada após reuniões entre Macron, a premiê e membros do governo. O anúncio intensificou os protestos contrários à reforma que já tomavam conta da França.
“Isso mostra que algo não está certo no sistema político francês. Podemos ver isso em nossas pesquisas regulares, que mostram que as pessoas querem uma democracia mais participativa, na qual os sindicatos e a sociedade civil estejam envolvidos na elaboração dos textos legais”, comentou à DW Bruno Cautres, do Centro de Pesquisa em Ciências Políticas, com sede em Paris.
Rejeição às moções não alivia peso para Macron
Embora tenha sobrevivido às moções, o Executivo ainda está no meio de uma intensa crise política e social.
Vincent Martigny, professor de ciência política na Universidade de Nice e na Escola Politécnica de Paris, acredita que a medida de quinta-feira mergulhou a França numa crise política que veio para ficar, pelo menos no médio prazo. Embora o cargo de Macron não esteja diretamente ameaçado, administrar o país deve se tornar uma dor de cabeça.
Para Martigny, ao sobreviver as moções, Macron teria duas alternativas: retirar a reforma, o que parece altamente improvável, ou mantê-la, o que pode desencadear “uma crise social de consequências imprevisíveis, podendo incluir eleições parlamentares antecipadas”.
O que argumenta o governo
Macron argumenta que a medida seria necessária para evitar que o sistema previdenciário entre em colapso à medida que a idade média da população do país aumenta, assim como a expectativa de vida.
Além disso, segundo o presidente, a reforma visa manter a credibilidade financeira do país nos mercados internacionais, onde a França refinancia sua dívida que gira em torno de 110% do Produto Interno Bruto (PIB).
“Mas ao contrário do que acontece em países como a Alemanha, os franceses não estão preocupados com a dívida pública. Para eles é uma questão secundária”, explica Martigny.
O sistema previdenciário, por outro lado, está no centro de suas preocupações. “Os franceses praticam o que eu chamaria de ‘nacionalismo de bem-estar’: eles são muito apegados ao seu sistema de redistribuição e o consideram uma parte crucial de sua identidade”, destaca Martigny.
O sistema previdenciário é a pedra angular do estimado modelo de proteção social da França. Baseia-se num regime de pensões contributivas obrigatórias e na solidariedade entre gerações. Em outras palavras: as contribuições dos que estão trabalhando atualmente financiam diretamente as pensões dos que estão se aposentando.
Ex-presidentes, incluindo Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac, encontraram resistência igualmente feroz de sindicatos e nas ruas quando tentaram mudar o sistema previdenciário.
Macron diz que, se não agir, o sistema previdenciário registrará um déficit anual de 13,5 bilhões de euros até 2030. O sistema previdenciário da França custa quase 14% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, o terceiro mais alto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), atrás da Itália e da Grécia.
Existe uma saída para a crise política?
Cautres acredita que a única forma de Macron retornar a águas políticas mais calmas no curto prazo é conseguir a maioria no Parlamento: “Ou formar um acordo de coalizão estável com os republicanos, ou dissolver a Assembleia Nacional, esperando um resultado melhor nas próximas eleições parlamentares.”
Mas Benjamin Morel, analista político e professor de direito público na Panthéon-Assas University, duvida que essas estratégias funcionem: “Os republicanos não são parceiros confiáveis, parecem um bando de elétrons livres sem muita disciplina partidária.”
Além disso, eleições parlamentares antecipadas podem trazer outro risco. “É provável que a extrema direita ganhe terreno, pois conseguiu construir uma imagem respeitável para si mesma durante os debates no Parlamento ao ser contra a reforma e do lado do povo. E o cansaço democrático, como estamos vendo agora, muitas vezes leva a abstenção ou voto a favor dos extremos”, observa Morel.
O que está previsto na reforma da previdência
O projeto de reforma da previdência aumentará a idade de aposentadoria de 62 para 64 anos. A mudança será implementada gradualmente, com a idade aumentada três meses a cada ano, a partir de setembro de 2023 até 2030.
No entanto, alguns empregados em profissões consideradas fisicamente ou mentalmente árduas manterão o direito de se aposentar mais cedo do que a maioria da população ativa.
A partir de 2027, para receber uma aposentadoria completa, a maioria dos trabalhadores terá que fazer contribuições para a previdência social ao longo de 43 anos, em vez de 42 anos. Isso já estava previsto numa reforma de 2014, mas Macron está acelerando o ritmo da transição.
Fonte: dw.com