Especialistas analisam o complexo problema da fome; Bolsonaro diz que agronegócio alimenta o mundo
Atualmente, 33,1 milhões de brasileiros passam fome , de acordo com levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). No final de 2020, eram 19,1 milhões, o que mostra que a insegurança alimentar deu um salto no Brasil nos últimos dois anos.
Apesar disso, o presidente Jair Bolsonaro (PL) enalteceu o agronegócio em discurso na 77ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira (20), relacionando-o com o combate à fome. “Se não fosse o agronegócio brasileiro, o planeta passaria fome, pois alimentamos mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo. O nosso agronegócio é orgulho nacional”, afirmou o presidente.
Para Nilson de Paula, coordenador da Rede Penssan, essa declaração evidencia a “desconexão estrutural entre a base produtiva da agricultura brasileira e as necessidades de alimentação da sua própria população”.
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“O agronegócio está vinculado com a dinâmica do comércio internacional. Não é que ele alimenta um bilhão de pessoas, ele vende para esse mercado porque é de alta rentabilidade. Do outro lado, nós temos uma população empobrecida como resultado de uma opção política de um modelo econômico que priorizou o empobrecimento do trabalho como via de competitividade”, afirmou Nilson em live do iGdeias desta terça-feira.
Valter Palmieri Jr, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, que também participou da live, disse que, na verdade, a produção de alimentos não é um problema no Brasil. “O problema da fome é a distribuição, é a renda. Isso de falar que o agronegócio alimenta o mundo é um discurso de defesa de maiores recursos. Mas, na prática, o agronegócio gera pouco emprego e ganha-se menos”, analisa o especialista.
Fome, um problema complexo
Valter explica que a fome é um problema multifatorial, que envovle tanto a distribuição de renda quanto a inflação, a distribuição de terras e as políticas públicas e disputas de poder, entre outros aspectos. “Em última instância, é uma escolha política, porque é possível politicamente enfrentarmos o problema da fome. É possível não termos fome”, ressalta.
Nilson afirma que olhar para o problema da fome sob a óptica de apenas um dos fatores, como a renda, é um problema. Para ele, o Auxílio Brasil é uma “versão terrível de uma política pública séria voltada para a assistência social” e, sozinho, não resolve o problema da fome no Brasil.
“A fome é um fenômeno social, não individual. E, como tal, ela deve ser encarada como o problema de um país que está se habituando a viver na desigualdade”, avalia Nilson. “É fundamental ter uma política de segurança alimentar combinada com uma política educacional”, complementa.
Para os especialistas, tratar deste problema complexo passa por dar mais incentivo e terra para pequenos produtores e reduzir os incentivos ao agronegócio. De acordo com um levantamento feito por Valter, a quantidade de terras brasileiras destinadas a produzir soja, milho e açúcar em 2000 era três vezes maior que a destinada a produzir arroz, feijão, todos os legumes e as cinco frutas mais consumidas no país. Hoje, é 11 vezes maior.
“Nós temos o dobro da quantidade de terra agricultável por habitante em relação à média mundial. Se existe um país no mundo que nessa situação, mesmo com pandemia, guerra na Ucrânia, que poderia e teria totais condições de não estar passando fome, é o Brasil”, afirma Valter.
Além da desigualdade na distribuição de terra, o Brasil também enfrenta outras desigualdades. A pesquisa da Rede Penssan mostra que seis em cada 10 lares chefiados por mulheres convivem com algum grau de insegurança alimentar. Metade dos lares chefiados por homens brancos estão em segurança alimentar, número que cai para 35% quando são pessoas pretas que chefiam a casa. A fome também é maior no Norte e no Nordeste brasileiros.
Para os especialistas, todas as desigualdades – de gênero, raça, regional e outras – devem ser levadas em consideração na hora de se pensar em políticas públicas que combatam a fome.
“As inúmeras desigualdades estabelecem diálogos. Alguém pode explicar: olha, a fome em lares de pessoas negras é maior porque, em média, tem uma renda menor. Isso é uma verdade, mas não é só isso. Existe uma desigualdade peculiar porque existe o racismo e uma dificuldade de certas oportunidades por uma questão histórica, por um racismo estrutural. Por isso que várias outras políticas, como por exemplo cotas, parecem que não têm nada a ver, mas dialoga com essa questão, com esse outro nível de desigualdade”, explica Valter.
Fonte: economia.ig.com.br