Aos 68 anos, 50 deles dedicados à vida cultural, Dona Domingas é fundadora do tradicional Grupo Flor Ribeirinha
Cuiabá não é mais nenhuma garotinha: na última sexta-feira (08.04), completou seus 303 anos de fundação. Mas, mesmo com a chegada da modernidade, a capital de Mato Grosso ainda mantém uma de suas mais acentuadas características: a tradição. E por falar em tradição, nada melhor do que conversar com uma das mais representativas personagens da cultura popular, um verdadeiro símbolo de resistência.
Aos 68 anos, 50 deles dedicados à vida cultural, Dona Domingas é fundadora do tradicional Grupo Flor Ribeirinha e dona de um carisma inquestionável. Carrega um semblante que parece sorrir permanentemente e está sempre pronta a receber visitantes, leva-los a seu quintal acolhedor à beira do rio e falar sobre a cultura ribeirinha. Com todo esse ânimo, falou um pouco sobre a Cuiabá de hoje e a Cuiabá de antigamente, em meio à calmaria de São Gonçalo Beira Rio, que tem convivido com a rotina frenética da cidade tricentenária.
“Tenho muito orgulho de ser cuiabana, filha de coxiponés, neta de coxiponés, e de sangue paraguaio. Ajudo a manter nossas tradições vivas. Carrego com garra a bandeira da cultura popular”, adiantou Dona Domingas.
Dançarina de siriri, benzedeira e apaixonada pelo Rio Cuiabá – entre tantas outras virtudes –, Dona Domingas revisita a época de sua juventude e nos leva para uma viagem no tempo até a Cuiabá de antigamente. Espia:
Dona Domingas, como é viver na Cuiabá de hoje? É como era há 50 anos?
Hoje está tudo muito diferente. Antes a gente vivia, hoje a gente sobrevive. Nasci e me criei na beira desse rio [Cuiabá]. Tomava banho, bebia dessa água e comia muito peixe. Hoje não se faz mais nada disso!
O Rio Cuiabá sempre foi muito importante na vida do ribeirinho. É claro que a senhora gosta de pescar, certo? Conte um pouco dessa prática quando o rio era farto.
Sempre gostei muito de pescar. O Rio Cuiabá era mesmo muito farto de peixes. Tinha muito pacu, dourado, peraputanga, jaú, cachara, pintado. Eu pescava com linhada, sem vara, porque dava mais firmeza. E dourado só se pescava com isca viva. Na margem do Rio Cuiabá, aqui mesmo na beira da comunidade de São Gonçalo, tinha até uma prainha. O povo pescava com rede porque tinha peixe demais. Às vezes, a rede ficava tão cheia de peixes que não tinha nem como retirar da água e os pescadores tinham que libertar boa parte do pescado para retirar a rede da água. Era uma fartura. A gente comia peixe todos os dias. Fazia paçoca de pilão com pintado seco, comia peixe seco com banana verde, peixe com mandioca, com quiabo, bagre ensopado com arroz sem sal. Agradeço a Deus por ter vivido tempos tão bons à beira desse rio. A gente era feliz e não sabia. Aí veio a modernidade e roubou a nossa paz.
Com o avanço da modernidade, a vida das pessoas acabou ganhando novos rumos. Algumas coisas ficaram mais fáceis, acredito que outras mais difíceis. Hoje em dia, com a vida mais agitada e a cidade cada vez mais tumultuada, existe algo que incomode a senhora?
Antigamente, estudar era mais difícil do que hoje em dia. Mas do que adianta? Diante de tanta violência, hoje os filhos da gente saem para estudar e a gente fica em casa rezando para que nada de ruim aconteça e que eles voltem para casa com segurança.
Existe alguma tradição, costume que a senhora traz consigo nos dias de hoje, algo que não se vê muito por aí, hoje em dia?
Minha avó, Tóla, era indígena coxiponés e me ensinou a benzer. Hoje sou a única benzedeira da comunidade [de São Gonçalo]. Benzo contra mal olhado, quebranto, costura, dor de cabeça… Para os ribeirinhos, a fé não costuma falhar.
E as festas religiosas, tão tradicionais e resistentes ao tempo, mudaram muito com o passar dos anos?
Antigamente, as festas religiosas eram todas feitas por devoção. Em 80 ou 81, não lembro direito, quando eu fui rainha, a comida servida na Festa de São Gonçalo era oferecida à comunidade gratuitamente. Depois, com a chegada da igreja, passou a ser cobrada para ajudar nos custos da diocese. Hoje está tudo pela hora da morte, não se pode dar mais nada de graça. Mas os festejos de São João, a Festa da Dona Dalvete, ainda mantém a tradição, o almoço ainda é servido gratuitamente. Em comemoração ao aniversário de Cuiabá, nos dias 5, 6, 7 e 8 de abril, ocorre a Rota do Peixe, uma festividade organizada por toda a comunidade. Nessa época, todas as peixarias são abertas e, nós, aqui, recebemos muitos visitantes.
E os famosos saraus, ainda fazem muito sucesso por aqui?
Os saraus não são tão frequentes quanto antigamente. De vez em quando ainda fazemos aqui no meu quintal, o famoso Quintal da Domingas. O bom é que tenho músicos à disposição. Quando tem lua, o povo se diverte tocando e dançando rasqueado cuiabano, sisiri. É sempre muito animado, as pessoas se divertem, não tem violência, só harmonia. Aproveito para convido a todos para virem um dia à comunidade se divertir com a gente!
Fiquei sabendo que a senhora é uma doceira de mão cheia, certo?
Sim, faço muitos doces caseiros…
Que tipo?
Doce de caju, laranja azeda, pixé, quebra queixo, furrundu, puxa puxa… quer experimentar?