DÍVIDA DOS ESTADOS COMO PARTE DO ENRIQUECIMENTO PRIVADO

DÍVIDA DOS ESTADOS COMO PARTE DO ENRIQUECIMENTO PRIVADO
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Neste momento trataremos do processo de endividamento das unidades federativas, sua relação com endividamento externo desde os anos 1970, sua conexão com o fluxo internacional de capital e os ciclos de endividamento dos estados nacionais e especialmente o papel dos bancos estaduais no financiamento das burguesias regionais. Quando falamos da origem da dívida dos estados temos que inicialmente responder a uma questão fundamental: por que os estados nacionais e as unidades federativas se tornaram grandes tomadores de empréstimos junto aos bancos privados e mesmo junto as instituições multilaterais?

A resposta a essa questão nos remete ao processo de acumulação de capital e seus impasses, já que o destino da mais valia deveria ser a sua reconversão em capital produtivo, com a aquisição de capital constante e variável e por sua vez elevação do Produto Interno Bruto. Os bancos originalmente tinham como papel fundamental centralizar capital – dinheiro dos vários setores e colocar à disposição do setor privado capital – dinheiro para auxiliar no processo de produção. Todavia, a chegada do capitalismo a sua fase monopolista, com a eliminação da livre concorrência e a substituição da exportação de mercadorias pelas exportação de capitais e do crescente parasitismo privado, temos o distanciamento de parte do capital da atividade produtiva e a entrada dos estados nacionais como tomadores de empréstimos, seja para financiar uma nova etapa de infraestrutura necessária para a acumulação de capital, seja para atrair moeda estrangeira para a obtenção de reservas cambiais ou assegurar a rolagem da dívida pública.

Para entendermos melhor o processo de endividamento externo e público, precisamos entender o que ocorre nos países industrializados fruto do acirramento das contradições internas do capitalismo, que provocam a crise de superprodução e por sua vez a necessidade da exportação de capital, seja na forma produtiva, seja na forma mercadoria ou na forma dinheiro. Segundo Eichengreen (2000) apud Gomes (2005) as crises cambiais e o ciclo de endividamento dos países subdesenvolvidos estão associados as etapas das crises capitalistas nos países centrais e sua busca de novos mercados nos países subdesenvolvidos. Isto fica mais claro quando resgatamos o processo de endividamento externo brasileiro desde os anos 1970, durante o Regime Cívico Militar. Tal fato se repetiu no endividamento externo de Alagoas e no financiamento do polo cloro químico.

Nessa direção precisamos ver como capital inativo se converte em capital produtivo. Xavier (1995) afirmou que esse processo de conversão de capital inativo em capital produtivo ocorre por conta e risco do próprio estado. Rosa Luxemburgo, no livro acumulação de capital já havia percebido esse processo. No Brasil, em especial, o surgimento do capital produtivo, em grande parte resultou do surgimento dos bancos estatais: BNDE, Banco do Brasil, Caixa econômica, BNB, BASA, e demais bancos estaduais. Os bancos privados tiveram como marca principal o distanciamento dos empréstimos de longos e na proximidade dos mecanismos de rolagem da dívida pública.

No regime Cívico Militar depois de 1964 o Estado brasileiro impulsionou uma fase de expansão chamada de Milagre brasileiro (1968 a 1973), que em parte resulta dos empréstimos externos tomados pela União, Estados, municípios e empresas estatais. Tal processo possibilitou a conversão de capital inativo vindo do Euromercado em capital produtivo, que determinaram as elevadas taxas de crescimento do PIB. Com isso os estados acabaram se convertendo em grandes tomadores de empréstimos para impulsionar a acumulação privada. Tal fato acabou por abrir o caminho para a montagem da dominação do sistema da dívida sobre a gestão pública sempre priorizando o pagamento do serviço da dívida e colocando em segundo plano as políticas sociais.

Por outro lado, esse processo de endividamento externo, a partir da crise do euromercado com a moratória mexicana e argentina em 1982, acabou levando a intervenção do Banco mundial e do FMI, que buscavam recriar as condições para a retomada do pagamento dos serviços da dívida via empréstimos e condicionalidades. Depois de passarmos pela experiência de vários planos de estabilização que fracassaram no combate à inflação (cruzado, fevereiro de 1986, Bresser, em abril de 1987, verão, em 1989 e Collor) e o surgimento e desaparecimento de várias moedas, tivemos a introdução do Plano Real em julho de 1994.

Antes disso tivemos a moratória brasileira de 1987, o Plano Brady, que renegociou as dívidas externas da América latina e o processo de conversão das dívidas externas em dívidas internas, preparatórios para a introdução da âncora cambial (Plano Real). A introdução do Plano Real com a abertura econômica e introdução das políticas neoliberais, reforma do Estado, privatizações, desregulamentação financeira, acabou por estabilizar a moeda, mas desestabilizar a economia e as contas públicas com a explosão da dívida pública. Esse processo foi marcado por um grande déficit das transações correntes e por uma crescente política de juros altos, seja pela própria lógica do Plano Real como pela ocorrência da crise mexicana em 1995, crise asiática em 1997 e crise russa em 1998.

Com o fim da âncora cambial em 1999 tivemos a introdução do Regime de Metas da inflação como fundamento da política monetária, que manteve a política de juros altos como instrumento de combate à inflação. Tal proposição manteve a lógica da política econômica dos rentistas que sempre está voltada para os rentistas, enquanto sacrifica as atividades produtivas e acelera o processo de endividamento público.

A dívida do estado e das unidades federativas teve seu nascedouro exatamente durante o governo Cívico militar e nos grandes empréstimos vindos especialmente do sistema monetário internacional privado chamado de euromercado de moedas, onde prevalecia os eurodólares. Naquele momento, tínhamos de um lado um grande volume de capital inativo (que não se reinvestia por conta e risco dos agentes privados) e governos estaduais apoiadores da ditadura que buscavam se legitimar com obras que impulsionasse o crescimento econômico e a pressão das oligarquias regionais por maior intervenção do Estado que desse sustentação aos investimentos privados.

O banco de desenvolvimento de Alagoas – PRODUBAN, conforme revelou a CPI, foi liquidado a partir da intervenção do Banco Central tendo em vista o rombo produzido pelos usineiros que tomaram empréstimos e não pagaram. O Estado de Alagoas pegou junto o Tesouro nacional recursos para cobrir os recursos não pagos pelos usineiros e acabou em seguida convertendo dívida privada em dívida pública. Vale lembrar que os recursos do PROES representaram muito para a dívida de Alagoas que foi renegociada em 1997 pela Lei 9496/97. Atualmente 35% da dívida pública alagoana renegociada pela Lei Complementar 156, em 2016, tem como origem a dívida privada dos usineiros vindas daquele banco do PRODUBAN.

Quando nos referimos a evolução das dívidas dos Estados temos que recordar em primeiro lugar dos efeitos da política de juro alto imposta pelo Banco central dos EUA, no final da década de 1970, que elevou a taxa de 5% para 20% ao ano, da existência de taxa de juros flutuantes no Euromercado que influenciou na crise fiscal de Alagoas em 1997. A resposta encontrada foi a criação da Lei 9496/97 que federalizou as dívidas estaduais rolando por trinta anos mas exigindo um massivo processo de privatizações das estatais estaduais e a introdução do PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), que visava reestruturar esses bancos e prepará-los para a privatização ou liquidação. Depois de vinte anos e com uma nova etapa de colapso fiscal surgiu a Lei Complementar 156 que renegociou a dívida por mais 20 anos, exigindo mais uma vez a privatização das estatais que restaram, aprovação da reforma da previdência estadual, da reforma do Estado e o fim das carreiras e dos concursos públicos.

No estágio atual o que podemos observar é que as dívidas dos estados, que já foram pagas mais de quatro vezes, continuam a crescer tendo em vista um novo ciclo de endividamento interno e externo desses estados. Todavia, agora temos mecanismo ainda mais perverso de endividamento como a securitização de créditos. Ao mesmo tempo, temos o aprofundamento da guerra fiscal e a expansão das renúncias fiscais, que subtrai as receitas estaduais, que somado a Lei Kandir e o pagamento do serviço dessas dívidas levam ao risco da generalização da adoção pelo governo federal de decretos do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para os estados.

A dívida vinda dos estados derivada dos empréstimos externos se somou a dívida vinda dos bancos estaduais, em parte constituída para financiar as burguesias regionais. Isto fica evidente quando analisamos a planilha da Secretaria do Tesouro Nacional3, com dados do Banco do Brasil, que trata da composição da atual dívida dos Estados, em especial a relevância da dívida vinda do PROES sobre a dívida pública dos estados renegociada em 2016. Neste momento podemos ver o impacto dessa incorporação dos passivos dos bancos à dívida dos estados, comprometendo o financiamento dos serviços públicos, conforme dados a seguir.

Em 2016, quando o Estado do Acre renegociou sua dívida pública por mais vinte anos de acordo com a Lei Complementar 156, a participação do PROES no novo saldo devedor era de 93% ou R$ 321 milhões do BANACRE. O Estado de Alagoas tinha uma participação de 35,78% ou R$ 2,3 bilhões derivado do PRODUBAN. O Estado do Amazonas ficava com 100% ou R$ 546 milhões, tendo origem no BEA. O passivo do BANEB representava 72% ou R$ 3,3 bilhões da dívida pública na Bahia. No Ceará o BEC determina 100% ou R$ 879 milhões da dívida que foi renegociada.

No Espírito Santo o BANESTES contribui com 41% ou R$ 684 milhões da dívida do Estado. Em Goiás o BEG representava 9,5% ou R$ 333 milhões do novo saldo devedor. No Maranhão a participação do BEM foi de 70,7% ou R$ 766 milhões, sobre o saldo devedor renegociado. Em Mato Grosso o BEMAT respondeu por 22,9% ou R$ 490 milhões da nova dívida renegociada.yguhbuihvugyvgyvyg
Em Minas Gerais a participação do BEMGE era de 29% R$ 23,9 bilhões no saldo refinanciado em 2016. O Estado do Pará tinha no BANPARÁ uma participação de 37,57% ou R$ 360 milhões no saldo devedor renegociado. O Estado do Paraná neste momento tinha uma participação de 90% ou R$ 8,8 bilhões, vinda do famoso BANESTADO. O Estado de Pernambuco tem uma das participações mais elevadas com 92,3% ou R$ 2,9 bilhões, vinda do BANDEPE. O Estado de Rondônia tem no BERON 80,1% ou R$ 1,9 bilhões determinando o saldo renegociado. Em Roraima o BANER responde por 53,3% ou R$ 97 milhões do novo saldo devedor.

O BESC tem uma participação 59,3% ou R$ 5,6 bilhões da dívida renegociada em 2016. O Estado do Rio grande do Norte, repactuado pela Lei Complementar 148/2014 tem 100% ou R$ 254 milhões vindo do Bandern. No Rio Grande Sul o BANRISUL, que não foi privatizado, determina 20% ou R$ 11,6 bilhões do saldo devedor. Já no Estado de Sergipe, o BANESE, responde por 10,7% ou R$ 110 milhões, mesmo não tendo sido privatizado. Para facilitar a compreensão do impacto precisamos lembrar que mesmo esses estados já tendo pago um volume elevado de recursos à União – correspondente a mais de 3 vezes o montante refinanciado na década de 90 – a tabela fornecida pela STN4 indica que ainda restaria um volume muito grande de dívida originada do PROES, o que compromete o financiamento das universidades estaduais e dos demais serviços públicos.

Os dados apresentados nos remete à necessidade de aprofundamento da auditoria cidadã em cada Estado com um grande destaque para os passivos desses bancos estaduais, que foram transformados em dívida pública, pois onde está investigação já foi feita se sabe que parte do rombo desses bancos estaduais deriva dos empréstimos tomados pelas burguesias regionais, que detém o poder econômico e por sua vez o poder político estadual e federal; os mesmos que estão defendendo a Reforma Administrativa e que já votaram nas reformas trabalhistas, previdenciária etc.

Dessa forma, a privatização iniciada no final do anos 1990 continua a ser amplificadora da dívida dos Estados, enquanto se tenta a cartada decisiva de liquidação dos serviços públicos com a privatização, com dinheiro do BNDES, das estatais que ainda restam, enquanto os estados continuam a tomar mais dinheiro emprestado junto aos bancos (pagando juros muito mais elevados que os oferecidos pelo BNDES aos beneficiários das privatizações), fazendo renúncia fiscal para os grandes grupos e cobrando impostos de pobres e permitindo ao setor financeiro ganhos ainda maiores, enquanto se inviabiliza a manutenção de serviços públicos essenciais à população. Não troque dívida contraída para favorecer os interesses privados pelas universidades públicas.5

Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), doutor pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Núcleo Alagoano pela Auditoria Cidadã e membro da RICDP.

BIBLIOGRAFIA

BUKHARIN, Nikolai. La Economia Politica del Rentista: uma critica a escola marginalista. Barcelona: Editorial Laia, 1974.

GOMES, José Menezes. Acumulação de capital e Plano de estabilização: um estudo a partir da âncora cambial na América latina nos anos 1990. Tese (Doutorado em História Econômica) – Universidade de São Paulo, 2005.

 

XAVIER, Jurandir Antônio. A industrialização subdesenvolvida: capital, classe e Estado na industrialização brasileira. João Pessoa: EDUFPB, 1995.

1 Este artigo foi publicado na revista Justiça Social, a. 2, n. 4, p. 4-7, 2021. Disponível em: https://issuu.com/.

2 Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), doutor pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Núcleo Alagoano pela Auditoria Cidadã e membro da RICDP.

3Cf. https://sisweb.tesouro.gov.br/

4 Cf. https://sisweb.tesouro.gov.br/

5 Cf. https://auditoriacidada.org.

 

 

 

 

 

 

 

 

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