Entulhos de demolição se misturam a móveis, documentação de presos, sucatas de informática e até material de escritório sem uso nas ruínas do Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC), também conhecido como Cadeia do Carumbé. Equipe do Jornal A Gazeta esteve na última semana no prédio em processo de demolição, cujo futuro é uma incógnita para quem passa diariamente diante dos altos muros que já abrigaram mais de 1,3 mil prisioneiros, quatro vezes acima de sua capacidade.
Inaugurada em 1975, a cadeia foi palco de muitas tragédias e rebeliões e há duas décadas vinha sendo condenada ao fechamento pela insalubridade. Mas em uma operação surpresa, sem conhecimento inclusive da Justiça, na madrugada do dia 5 de janeiro deste ano, 469 presos foram removidos para a penitenciária Ahmenon Lemos Dantas, em Várzea Grande, que praticamente dobrou sua capacidade.
Extraoficialmente, a informação é de que a área já foi negociada pelo Estado com uma construtora para abrigar condomínios residenciais. Mas, oficialmente, a informação é de que “está sendo estudada a melhor definição para aproveitamento social daquele espaço”.
Após a transferência dos presos, o juiz da Vara de Execuções Penais, Geraldo Fidelis, determinou que o governo reabrisse a unidade. Mas, como as obras de demolição iniciaram imediatamente após a retirada dos presos, o retorno foi inviabilizado. Apesar da pressa inicial em demolir o prédio, hoje as obras estão paralisadas.
O CRC era a única unidade prisional que oferecia programas de ressocialização, com oficinas de carpintaria, funilaria, entre outros no Estado. Os programas começaram há quase duas décadas, com uma fábrica de vassouras. Graças a eles, a unidade se destacou nacionalmente, afirma Fidelis.
Após a mudança, todos os programas cessaram e os 1.099 presos que hoje superlotam a penitenciária Ahmenon aguardam pela construção das oficinas para que possam ser retomadas as atividades. Mas o reduzido efetivo de policiais penais, aliado à superlotação da unidade, pode inviabilizar a retomada, conforme aponta o Sindicato dos Servidores do Sistema Penitenciário.
Em ruínas
Quase que diariamente o policial penal Clóvis Henrique Mendes da Silva, 63, passa pela frente do CRC, no caminho do trabalho para casa, e se sente tomado pela nostalgia ao ver o antigo e imponente prédio em ruínas. Olho para as torres altas e lembro-me dos muitos plantões que fiz.
O policial, ainda em atuação, lembra que o CRC foi a primeira unidade em que trabalhou. Ingressou em dezembro de 2004 e ficou por mais de 10 anos na primeira passagem. Afirma que, à época, os policiais ficavam entre os presos, sem qualquer segurança. Ao final da conferência e chamada nos raios, podendo superar 100 presos em cada ala, só restava agradecer a Deus por terem sobrevivido a mais um dia.
Lembra da época que foi informado pelos superiores que haviam rumores de que ele seria morto, em decorrência da atividade, o que deixou a mulher e os filhos em desespero. Mas, apesar da dura e arriscada rotina, assegura que existem boas lembranças, das amizades que construiu com os colegas. Passou, pela segunda vez pela unidade, a partir de 2020, quando já havia se transformado em CRC e garante que a situação era totalmente diferente. Era muito mais tranquilo, pois a periculosidade dos presos era muito menor, já que o local praticamente funcionava como oficina de trabalho e dormitório de apenados que trabalhavam fora da unidade durante o dia.
Do passado, ficam as lembranças do esgoto correndo pelos tornozelos a cada chuva que entrava pelo telhado e se misturava com a água das fossas. A insalubridade não era restrita só aos presos, mas fazia parte da rotina dos policiais penais que atuavam na unidade sem as mínimas condições de alimentação e descanso.
A grande rebelião
O advogado Renato Gomes Nery, 71, que presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre 1989 e 1991, lembra de sua atuação na negociação da maior rebelião ocorrida, até então, em um presídio do Estado. Como o advogado mais novo a assumir a OAB, aos 35 anos, estava nos primeiros dias do mandato e aponta que houve excessos, tanto pela parte dos amotinados, como pelas forças de segurança. O resultado foi a morte de 10 pessoas, sendo 8 presos e dois policiais, apos invasão da unidade por cerca de 400 homens das forças de segurança.
A rebelião ocorreu em 1989, um ano antes de o jornal A Gazeta ser inaugurado. Conforme relato do jornalista Rosivaldo Sena, que acompanhou o caso pelo jornal Diário de Cuiabá, “os presos aproveitaram o domingo de visita e fizeram 80 reféns – a maioria crianças – e o diretor do presídio, Eldo Sá Corrêa. Após 48 horas de muita tensão e negociações, policiais armados com metralhadoras e gás lacrimogêneo entraram no presídio. Os detentos reagiram, transformando o local num campo de batalha”.
Os presos conseguiram se armar com revólveres que entraram no presídio em um fundo falso de geladeira. Após renderem um carcereiro, foram até a sala da diretoria e pegaram as chaves, abrindo as demais celas, relata o jornalista. Chegaram a exigir avião e carro forte para fuga, além de armamentos. A invasão ocorreu depois que um policial e dois detentos já haviam sido mortos.
Outro lado
Após encaminhar imagens da documentação ainda espalhada por vários setores da unidade, entre lixo e materiais de demolição, para a assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública (Sesp), a informação obtida foi de que toda documentação referente aos servidores e presos foi recolhida e está devidamente armazenada na Secretaria Adjunta de Administração Penitenciária (SAAP).
Fonte: gazetadigital