Uma maior conscientização dos envolvidos, dos médicos às parturientes, tem provocado a redução no uso das cirurgias cesarianaspara nascimentos no país, conforme mostra estudo divulgado nesta quarta-feira.
De acordo com o levantamento, realizado por pesquisadoras da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade de Brasília (UnB) e publicada na revista Cadernos de Saúde Pública, o programa Parto Adequado fez cair em cinco anos 13,7% a proporção de partos por cesárea nos hospitais privados que decidiram adotar o projeto, criado pelo governo federal como ferramenta para buscar aumentar o número de nascimentos por parto normal no país.
No mesmo período avaliado, de 2015 a 2019, a incidência da cirurgia cesariana caiu 3,4% nos hospitais onde o programa não foi implementado — indicando uma lenta mudança de mentalidade no país.
Atualmente, a taxa de cesáreas no país fica em 57,6%, segundo dados do Ministério da Saúde – bem acima da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) que é de 15%. Essa taxa, porém, é bem maior em hospitais privados, ficando em 86%.
Principal autora da pesquisa, a médica obstetra e ginecologista Andrea Campos, doutoranda da USP, acredita que a ampla adesão das cesáreas no Brasil “é um problema multifatorial”. “Envolve a comodidade da realização de um parto programado e rápido, que acaba gerando um conflito de interesse para o obstetra”, comenta ela.
Campos explica que quando o obstetra realiza um parto normal, ele “fica sujeito à imprevisibilidade e uma menor remuneração em relação a horas trabalhadas”. Ela argumenta que isso pode ser resultado do fato de que, no país, o parto geralmente é acompanhando pelo mesmo médico que realiza o pré-natal — em países com menor incidência de cesáreas, o parto costuma ser realizado pelo plantonista do hospital ou por obstetrizes. “[Isso] isentaria conflito de interesses”, avalia a médica.
Ela cita ainda o fato de que “historicamente, os partos normais são acompanhados de excesso de intervenções, sendo muitas vezes vivenciado de forma traumática por parte das mulheres”, e isso acabou criando uma cultura de “muito medo do parto”.
Até certificação foi criada
O programa Parto Adequado foi criado há dez anos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) graças a uma parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, e a organização americana sem fins lucrativos Institute for Healthcare Improvement (IHI). Desde o início, visava valorizar o parto normal e reduzir o percentual de cesarianas sem indicação clínica. “É um programa direcionado ao setor privado, mas envolve também hospitais públicos”, diz Campos.
No ano passado, como uma evolução do Parto Adequado, a ANS criou a Certificação de Boas Práticas na Linha de Cuidado Materna e Neonatal, um reconhecimento que pretende estimular operadoras de planos de saúde e as redes de assistência a buscarem medidas para garantir o direito ao pré-natal, ao parto e ao puerpério com qualidade e segurança.
De acordo com o levantamento publicado nesta quarta, em 2015, quando o Parto Adequado estava em sua fase inicial, havia 35 hospitais participantes. Em 2019, último ano analisado, o número de adesões tinha saltado para 108.
Na avaliação da médica obstetra e ginecologista Adriana Gomes Luz, professora na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), programas como este “são fundamentais porque promovem uma mudança cultural e institucional”.
“Ao capacitar profissionais, mudar protocolos hospitalares e oferecer suporte contínuo às gestantes, esses programas mostram que é possível reduzir de forma significativa o número de cesarianas desnecessárias sem comprometer a segurança”, afirma Luz.
“A experiência do Parto Adequado em hospitais privados de São Paulo, por exemplo, demonstrou que a redução das cesáreas é viável quando há uma abordagem baseada em evidências, que prioriza a saúde da mãe e do bebê. O oferecimento de práticas para alívio da dor neste programa também fortalece a iniciativa”, complementa ela.
Riscos da cesariana
De acordo com especialistas, cesarianas sem necessidade trazem riscos evitáveis para a mãe e para o bebê. “A cultura cesarista no Brasil é o resultado de uma combinação de fatores históricos, culturais e estruturais. Entre eles, podemos citar a percepção de que a cesariana é uma forma mais rápida e previsível de parto, tanto para os médicos quanto para as gestantes, além da crença, muitas vezes equivocada, de que ela seria sempre uma escolha mais segura”, diz Luz.
“A cesariana sem indicação acaba apresentado mais riscos que benefícios a longo prazo. Por exemplo, risco de complicações em futuras gestações como placenta prévia, acretismo placentário, além de maior risco de hemorragia e infecção”, exemplifica a médica.
A conscientização é a melhor ferramenta para melhorar esse cenário. “Mudar essa cultura traria inúmeros benefícios, tanto para as mães quanto para os bebês. O parto vaginal, quando não contraindicado, é geralmente associado a uma recuperação mais rápida para a mãe, menor risco de complicações cirúrgicas e uma melhor adaptação do bebê à vida fora do útero”, argumenta Luz.
“A mudança por vários caminhos, como a educação em saúde para gestantes, a capacitação dos profissionais de saúde para oferecer um cuidado mais humanizado e centrado na mulher e a criação de políticas públicas que incentivem práticas baseadas em evidências científicas”, defende a médica, lembrando que é essencial que as mulheres “sejam empoderadas com informações claras e acessíveis” para tomar decisões conscientes sobre o parto que desejam, “sempre levando em consideração a segurança de ambos, mãe e bebê”.
Campos ressalta que a importância da “conscientização da equipe assistencial e da população”, com “enfermeiras obstetras acompanhando partos de risco habitual e equipe de assistência atendendo em regime de plantão”.
“A dor durante o trabalho de parto é um dos maiores temores das gestantes, e no Brasil, a escassez de analgesia farmacológica disponível para o parto é um problema significativo”, reconhece Luz. “Esse fator tem sido apontado como um dos principais motivos que levam muitas mulheres a optarem pela cesariana. Poucos hospitais contam com anestesiologistas disponíveis 24 horas para oferecer analgesia quando solicitada, o que limita o acesso das gestantes a um parto menos doloroso.”
Ela acredita que para reduzir as altas taxas de cesarianas é preciso garantir “o acesso universal à analgesia” e cita Estados Unidos e França como modelos em que “a oferta de analgesia durante o parto é amplamente acessível”.
De acordo com levantamento realizado pela médica Maria do Carmo Leal, pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no início da gestação 70% das grávidas brasileiras optam pelo parto normal — para a maioria, a opção pela cesariana acaba sendo colocada durante os nove meses.
Brasil no topo do ranking
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), índices de cesarianas inferiores a 10% são um problema de saúde pública — justamente porque indicam que mesmo em casos de necessidade a cirurgia específica não vem sendo feita. Já quando a incidência da cesárea é maior do que 20%, o problema é o oposto: ou seja, o procedimento tem sido feito sem real necessidade.
Estudo publicado em 2018 pelo periódico científico The Lancet com análise de dados de 169 países situou o Brasil ao lado da República Dominicana, do Egito e da Turquia como os lugares onde a técnica é utilizada em mais da metade dos nascimentos. O levantamento colocou o Brasil na segunda posição entre os que mais realizam o procedimento, logo após a República Dominicana.
Fonte: dw.com