Manifestações de desprezo e até ódio contra nordestinos marcaram algumas concentrações promovidas por eleitores inconformados com a derrota do presidente Jair Bolsonaro no segundo turno do pleito presidencial, em 30 de outubro. Vídeos e áudios produzidos por estudantes de São Paulo e do Rio de Janeiro incluem, entre outros gestos, expressões degradantes contra brasileiros dos nove Estados do Nordeste.
Esse fenômeno expõe uma divisão política refletida em linhas mais ou menos geográficas: o Nordeste foi a única das cinco regiões brasileiras em que a votação de Luiz Inácio Lula da Silva superou a de Bolsonaro. Mas, na visão de historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, essas manifestações expressam também, em uma perspectiva mais abrangente, os impasses e fraturas da formação do Estado nacional brasileiro.
Pesquisadores apontam a ironia de o ânimo antinordestino situar-se na contramão de uma evidência histórica: sem o protagonismo de indivíduos vindos do que é hoje a Região Nordeste, a existência das demais regiões não teria sido possível.
Entre os primeiros povoadores dessas regiões, especialmente do Sul, estavam sesmeiros, tropeiros, militares, comerciantes, artesãos, religiosos e sobretudo escravizados nascidos na Bahia, em Pernambuco, na Paraíba, no Rio Grande do Norte, no Ceará e no Maranhão.
Essa realidade pode ser constatada não apenas pelo exame dos sobrenomes das famílias mais antigas, muitos dos quais são ramos de célebres clãs baianos e pernambucanos – Azevedo, Coelho, Silva, Freire, Furtado, Melo, Cunha, Borges, Costa, Vieira e outros – como pela observação de tipos físicos, economia, religiosidade e cultura.
Autor da trilogia A Fronteira (2002 e 2015), sobre a fixação dos limites entre Brasil, Uruguai e Argentina, o historiador Tau Golin recomenda cuidado àqueles que, no Rio Grande do Sul, fizerem referência a nordestinos como inferiores. “Ao fazer isso, grande parte dessas pessoas está possivelmente degradando os próprios antepassados. Muitos descendem desses nordestinos”, adverte.
Segundo o historiador, os atuais Estados do Sul e, principalmente, o Rio Grande do Sul foram inicialmente territórios conquistados e ocupados por uma grande variedade de brasileiros vindos do Norte, entre os quais se sobressaem os oriundos da região que hoje corresponde ao Nordeste.
Aqueles que hoje se chamam nordestinos eram especialmente numerosos entre os engajados nas primeiras expedições marítimas à costa rio-grandense.
“Nos períodos colonial e imperial, o Rio Grande do Sul foi povoado por políticas de Estado e por aventureiros. As políticas de Estado eram executadas por meio de projetos de povoamento territorial e, em época de guerra, pela concessão de lotes rurais e urbanos a soldados”, descreve Golin, doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
A história do Rio Grande do Sul é permeada de personagens nascidos e criados na atual região Nordeste que, radicados ou de passagem pelo Sul, ajudaram a mudar a integrar o espaço ao Brasil.
Foi um militar nascido na Bahia, Domingos Alves Branco Muniz Barreto (1748-1831), o primeiro a incentivar a exploração do charque (“as carnes salgadas que devem ser exportadas a este reino em lugar das que vem da Irlanda”) na região de Pelotas, destinada a Portugal pelo Tratado de Santo Ildefonso (1777).
No século 19, outros militares deixaram sua marca na história local, como o marechal Deodoro da Fonseca (de Alagoas), o almirante Custódio José de Mello (da Bahia) e o capitão Tupy Caldas (do Maranhão), a quem muitas vezes é erroneamente atribuída origem gaúcha.
Para Golin, porém, é um erro limitar a contribuição do atual Nordeste a esses personagens ilustres.
“São nomes da elite colonial, do Império e da República, conhecidos na história oficial. O fenômeno é muito mais profundo, porque é preciso levar em conta o contingente populacional. Os nordestinos vão contribuir muito na formação gentílica, na mestiçagem”, explica Golin.
A influência nordestina no charque
A indústria do charque (chamado de carne de sol no Nordeste), atividade econômica mais importante do Rio Grande do Sul no século 19, é um dos exemplos mais claros da influência nordestina
A implantação de charqueadas com vistas à comercialização é atribuída a José Pinto Martins, português que criou a primeira fábrica de charque às margens do Arroio Pelotas ou do Canal de São Gonçalo no último quartel do século.
Pinto Martins chegou ao Rio Grande do Sul vindo do Ceará, onde já produzia carne de sol. A mudança foi motivada pela seca de 1777, conhecida como “Seca dos Três Sete”, que se estendeu até 1880 e provocou a morte de mais da metade da população da região atingida no Nordeste.
“Uma das razões mencionadas para a transferência de Pinto Martins para o Rio Grande é que as secas tinham deixado o gado nordestino em estado reduzido e mal nutrido”, afirma Ester Gutierrez, autora de Negros, Charqueadas e Olarias: Um Estudo sobre o Espaço Pelotense (2001).
Em 1824, Pinto Martins sentiu-se mal e ditou seu testamento. Solteiro, reconheceu como herdeiro João Pinto Martins, filho que tivera com uma ex-escravizada, e deixou dinheiro para dois outros filhos de ex-cativas.
“Esses escravos, que trabalhavam nas embarcações que levavam o charque para o porto de Rio Grande, eram nordestinos. No testamento, Pinto Martins libertou-os”, diz a doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
A ideia de identidades regionais
Para Jocelito Zalla, autor de Simões Lopes Neto e a Fabricação do Rio Grande Gaúcho (2022), a ideia de influência do Nordeste na formação do Sul antes do século 20 deve ser vista com cautela. Foi só a partir dessa época que se firmaram as noções de identidade regional predominantes até hoje.
“A ideia de Nordeste é recente. Segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque, até os anos 1920 usava-se o termo mais geral ‘Norte’ para a região. Os traços culturais e sociais, além da definição da paisagem representativa, só se estabelecem nesse período”, lembra.
Nos períodos colonial e imperial, diz Zalla, a própria população do que hoje é conhecido como Nordeste definia-se a partir de outros recortes de identidade política, geralmente locais.
“Nem o Nordeste nem o nordestino existiam no período de formação do Rio Grande do Sul. Do ponto de vista da História, as pessoas que emigraram para cá (Sul) ainda não eram nordestinas”, assinala.
No século 20, por outro lado, Zalla identifica não apenas trocas simbólicas entre as regiões mas uma verdadeira colaboração na construção das duas identidades, a do Sul e a do Nordeste.
“A visão de regionalismo de Gilberto Freyre confluiu com a dos modernistas do Rio Grande do Sul, como Moysés Vellinho, principalmente depois dos anos 1930. José Lins do Rego comentou literatura gaúcha em seus livros de crítica literária dos anos 1930 e articulou uma visita de Freyre ao Rio Grande do Sul”, enumera o doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No terreno da cultura, essa proximidade evoluiu muitas vezes para a produção de obras. A primeira edição crítica da coletânea Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto (1865-1916), em 1949, não foi organizada por nenhum pesquisador gaúcho, mas pelo alagoano Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989).
“Ele incluiu na obra um estudo formalista consagratório e um vocabulário que permitiu a compreensão do texto no restante do Brasil, além de mobilizar sua rede de sociabilidade intelectual no Rio de Janeiro para difundir o livro”, explica Zalla.
Outro exemplo é o de Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002), um dos fundadores do movimento conhecido como tradicionalismo gaúcho, que, nos anos 1950, em São Paulo, produziu canções e programas regionalistas de TV em parceria com nordestinos e compôs um xote gravado por Luiz Gonzaga (1912-1989).
O preconceito
Isso não significa, de acordo com Zalla, que não existam estigmas relacionados à região que corresponde ao atual Nordeste. “No Rio Grande do Sul, por exemplo, no século 19 chamavam-se de forma pejorativa de ‘baianos’ todos os brasileiros dos atuais Norte e Nordeste. Isso pode ser mapeado no cancioneiro da Revolução Farroupilha”, observa.
Para Golin, esse preconceito antibaiano e antinordestino, no Sul, está ligado a um aspecto central da formação nacional brasileira: a questão racial.
“Esse problema se manifesta pela questão do fenótipo, do tipo físico, que, por sua vez, se relaciona ao lugar social dos nordestinos. Essa base, que vai se associar à ignorância histórica, tem um lastro muito acentuado entre os descendentes de migrantes”, afirma.
Golin define esses contingentes como “grandes cotistas”. “São pessoas que vêm para o Brasil com grandes vantagens, num processo de migração que tinha por paradigmas o estímulo à pequena propriedade e à produção para o mercado interno e, principalmente, o processo de apagamento da história da escravidão e o branqueamento da população”, explica.
O pano de fundo dessa política foi, na opinião do historiador, o desejo do Império do Brasil de participar do Concerto das Nações.
Os migrantes instalaram-se em espaços desprezados pelo latifúndio e pela grande empresa rural: os territórios indígenas. “Foi preciso convencer esses migrantes, com um discurso ideológico e racial, de que estavam vindo para o Brasil travar uma luta entre civilização e barbárie”, argumenta.
O resultado foi que, nas regiões de predomínio de migrantes, a população assentada tende a situar tudo que não se assemelha a sua etnia “em um nível inferior”, diz Golin.
“Seu discurso se expressa em chacotas, mas também em formulações políticas, como uma forma de diminuição do que não pertence à comunidade de origem migrante. Os ‘estranhos’ são os brasileiros, os negros”, conclui.
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63733197
Fonte: bbc.com