A União Europeia (UE) observa de perto a escalada do conflito entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o X (antigo Twitter), que culminou na semana passada no bloqueio em todo o país da plataforma controlada por Elon Musk.
A medida drástica foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes e referendada pela Primeira Turma da corte, após a rede social se recusar a cumprir ordens judiciais e indicar um representante legal no país.
Musk também tem um histórico de conflitos com a UE, que aprovou em outubro de 2022 um regulamento para lidar com desinformação e conteúdos ilegais em redes sociais – o Digital Services Act (DSA), que prevê o bloqueio das plataformas como último recurso.
O DSA é uma das inspirações do projeto de lei enviado pelo governo brasileiro ao Congresso para regular as redes sociais, retirado de pauta após falta de consenso entre os deputados.
À frente da aprovação do DSA estava o francês Thierry Breton, comissário da UE para o Mercado Interno e Serviços. Em maio de 2022, ele reuniu-se com Musk para debater a normativa europeia e divulgou um vídeo no qual o dono do então Twitter afirmava estar “alinhado” à forma como o bloco europeu pretendia regular as plataformas digitais.
A DW ouviu cinco organizações da sociedade civil sediadas ou com representação na Europa sobre como elas avaliam a ordem judicial que bloqueou o X no Brasil.
“Decisões precisam ter equilíbrio e proporcionalidade”
Julian Jaursch, diretor sobre regulação de plataformas do think tank interface (ex-Stiftung Neue Verantwortung), sediado em Berlim, vê o bloqueio do X no Brasil como um exemplo de conflitos em todo o mundo sobre a moderação de conteúdo em plataformas digitais e os embates entre o poder do Estado e o das empresas privadas.
“Em um país democrático e com Estado de direito, empresas privadas não podem ser autorizadas a não seguirem a regras. Ao mesmo tempo, há o risco de excessos do poder público e de que decisões justificadas como regulação de plataformas ou combate a crimes sejam, na prática, tomadas por motivos políticos ou disputas de poder”, afirma Jaursch, pontuando que ele não se refere especificamente ao bloqueio do X no Brasil
“É muito importante ter equilíbrio e proporcionalidade. Por isso é preciso ter transparência, Estado de Direito, saber o que está nas ordens judiciais e por que algumas regras existem. É preciso haver controles em cada um dos Três Poderes e por parte da sociedade civil e da imprensa, sobre o poder público e sobre as empresas, para que seja possível apontar excessos”, diz. “Se tudo isso estiver funcionando, a regulação de plataformas funciona relativamente bem; se não, há esses riscos.”
No caso brasileiro, ele avalia ser natural que o Judiciário esteja na linha de frente da definição do que é legal ou ilegal nas redes sociais, mas diz que algumas ordens judiciais para o bloqueio de contas “não foram muito transparentes”.
Jaursch também considera que a personalidade mercurial tanto de Musk como de Moraes contribui para a evolução do conflito: “Ambos são muito proeminentes, poderosos e francos.”
Ele critica a multa a quem usar VPN para acessar o X no Brasil, que considera “excessiva e desproporcional”.
Especialista no DSA da União Europeia, ele diz que o regulamento estabelece diversas etapas intermediárias antes da suspensão de uma plataforma como último recurso, que podem incluir a oitiva de funcionários, a análise de documentos sigilosos e a aplicação de multas pesadas. O texto prevê regras para ampliar a transparência, aderência a normas e a responsabilização das plataformas, em vez de definir quais conteúdos são legais ou ilegais.
“Justiça brasileira está dizendo que ninguém está acima da lei”
A diretora de um think tank baseado na Europa especializado em extremismo e desinformação online, que preferiu falar sob anonimato, também avalia que a queda de braço entre o X e o Supremo brasileiro representa choques globais sobre a regulação de plataformas digitais, como a recente prisão do fundador do Telegram, Pavel Durov, na França.
Ela pondera que pessoas com interesses econômicos ou políticos costumam caracterizar esses conflitos como uma luta pela liberdade de expressão, quando, em muitos casos, trata-se da aderência às normas de um determinado país ou do simples cumprimento dos termos de serviço das plataformas.
“Uma das mensagens enviadas pelo Judiciário brasileiro é que ninguém está acima da lei, e que ser proprietário de uma rede social ou ter uma grande fortuna não o isenta de seguir as leis locais”, afirma, citando que a exigência para o X ter um representante legal no país seria “bastante razoável”. “Não me parece que o X tinha intenção de entrar em conformidade no futuro próximo, segundo os comunicados da própria empresa.”
Sobre o caso brasileiro, ela avalia que a liderança do Judiciário no controle das plataformas digitais, definindo precedentes sem regras claras sobre o tema, “é sempre arriscado e não é o melhor caminho”, mas compreensível na ausência de normas específicas. “O ideal é ter leis nas quais as regras para esse controle estejam claras e com punições pelo descumprimento. Mas entendo que muitos países tiveram que encontrar alternativas para garantir um ambiente digital seguro enquanto tentam aprovar leis.”
Indagada sobre a multa para brasileiros que usarem VPN para usar o X, ela diz que a melhor estratégia é “ir atrás da empresa que descumpre a lei, em vez das pessoas que usam aquele serviço”.
A especialista destaca que tem havido um esforço global para entender como regular da melhor forma as plataformas digitais, após elas demonstrarem que não farão isso por conta própria. “Por 20 anos, essas plataformas tiveram a oportunidade de se autorregular, e falharam repetidas vezes. Elas mostraram que não cumprirão suas próprias políticas internas nem serão transparentes sobre suas práticas, a menos que sejam forçadas a fazer isso.”
“Bloqueio do X afeta seriamente o direito à liberdade de expressão”
Jan Penfrat, consultor sênior de políticas públicas da rede European Digital Rights (EDRi), sediada em Bruxelas, considera que a decisão do Supremo tem “sérias consequências negativas para os direitos à liberdade de expressão, de acesso à informação e de reunião (digital) no Brasil”, e afeta pessoas que usam a plataforma para acessar conteúdos perfeitamente legais.
“Esse tipo de medida precisa sempre ser o último recurso, quando todas as demais tentativas falharam para fazer uma plataforma se adequar às normas, e precisa ter garantias contra influência política.” A medida, diz, tem “sérias consequências negativas para os direitos à liberdade de expressão, de acesso à informação e de reunião (digital) no Brasil”.
Ele destaca que a DSA da União Europeia permite o bloqueio de plataformas “somente como último recurso, sob circunstâncias estritas do artigo 51(3) e depois que todas as outras tentativas de responsabilizar o provedor falharam”.
Esse artigo estabelece que o bloqueio deve ser determinado pelo Judiciário de um país-membro da UE e durar quatro semanas, e pode ser prorrogável se for devidamente justificado.
Penfrat também criticou a decisão de punir usuários brasileiros que usem VPN para acessar o X. “Ameaçar pessoas que fizerem uso de ferramentas legais para acessar conteúdos legais é desproporcional é não pode ser justificado sob as normas de direitos humanos”, afirma.
“Caso do Brasil pode desencadear efeitos semelhantes em outros países”
“O cenário do discurso online vem se transformando há anos e cada vez fica mais claro de que com maior alcance vem maior responsabilidade, inclusive para as redes sociais”, afirma Cathleen Berger, co-diretora do projeto Upgrade Democracy na fundação alemã Bertelsmann Stiftung.
Ela diz que à medida que a influência de plataformas como o X cresce no debate público, os Estados precisam atentar ao seu impacto, inclusive sobre as instituições e processos democráticos. “Os fatos recentes no Brasil destacam esse equilíbrio delicado e as tensões na definição e aplicação de regras sobre o discurso online.”
Berger considera difícil no momento avaliar se o bloqueio do X no Brasil foi uma decisão acertada, mas ressalta que a rede social de Musk “está sob fogo cruzado em múltiplas jurisdições devido à sua incapacidade de cumprir regras sobre a responsabilização de plataformas”.
Ela diz que o caso brasileiro é “particularmente interessante” sob uma perspectiva global, já que as plataformas são frequentemente acusadas de seletividade em quais países cumprirão as normas locais, com prioridade para os da América do Norte e da Europa. “Aumentar a responsabilização [das plataformas] em outros mercados é necessário, e este caso pode muito bem desencadear outros semelhantes.”
Apontando para o futuro, Berger considera fundamental que o Brasil defina de forma clara que tipo de discurso em plataformas digitais serão considerados ameaças à democracia ou ilegais, e estabeleça “processos de arbitragem e supervisão para que essa regras não sejam abusadas e para que as sanções não resultem em danos não intencionais”.
“Questionamento de ordens judiciais por Musk pode abrir precedente perigoso”
Para Bruna Santos, gerente de campanhas global da Digital Action e baseada em Berlim, o bloqueio do X foi uma decisão extrema “não recomendada em condições normais de temperatura e pressão”, mas necessária diante da “intransigência” de Musk.
“Ele tem desafiado a autoridade de instituições democraticamente estabelecidas em todo o mundo, em especial aquelas que tentam implementar políticas de combate à desinformação e ao discurso de ódio”, afirma, citando conflitos recentes de Musk com Breton; com o premiê britânico, Keir Starmer, após episódios de atos violentos da extrema-direita no Reino Unido; e com o premiê australiano, Anthony Albanese, após a relutância do X em remover vídeos de um ataque a faca em uma igreja de Sydney.
Além do potencial de questionamento de ordens judiciais pelo X abrir um “precedente perigoso” em todo o mundo, Santos diz que as plataformas digitais têm investido cada vez menos em equipes de segurança online nos países do Sul Global. “Isso mostra que elas se preocupam mais com países nos quais o custo de desobedecer as normativas legais é mais alto.”
Ela afirma que o ponto mais problemático da decisão de Moraes foi sobre a multa a quem usar o X por VPN, que se mostra “desproporcional” e de difícil fiscalização. E pondera que o Brasil se beneficiaria de uma estrutura normativa mais robusta sobre o tema para que esse vácuo não obrigasse o Judiciário a tomar a dianteira na regulação das plataformas.
“Organizações brasileiras têm tentado aprovar o projeto de lei das fake news, que seria uma espécie de complementação à responsabilidade civil colocada no marco civil da internet, mas isso depende de uma análise de vários setores da sociedade”, diz.]
Fonte: dw.com