Em seus quase 37 anos de sacerdócio, não foram poucas as vezes que o padre Eugênio Ferreira de Lima questionou o costume, tradicional em muitas famílias católicas brasileiras, de não comer carne vermelha na quaresma — alguns, apenas na Semana Santa; outros, exclusivamente na Sexta-Feira Santa, dia em que o protagonista à mesa costuma ser o bacalhau.
“Sobretudo porque bacalhau é mais caro do que certas carnes”, disse Lima, em troca de mensagens com a reportagem da BBC News Brasil dias atrás. “Também não vejo sentido em fazer jejum ou não comer carne e não dar o que deixou de comer para os mais pobres. Às vezes me sinto uma voz isolada nesse sentido.”
O questionamento levantado pelo religioso faz muito sentido, sobretudo em tempos de inflação, crise socioeconômica e volta do Brasil ao mapa da fome. Mas, ao mesmo tempo, é uma crítica que instiga: de onde veio o costume do bacalhau na sexta-feira que antecede à Páscoa?
Para especialistas, é uma história longa em que não há uma única explicação. E, claro, tem suas raízes na influência de Portugal enquanto país colonizador do que depois se tornaria o Brasil. Outra parte da explicação está no fato de ser um produto que pode ser conservado por mais tempo sem refrigeração.
“Quando o assunto é o ‘não se pode comer tal coisa’ e ‘é permitido consumir tais produtos’, a regra não é tanto baseada na questão econômica”, explica à reportagem o historiador André Leonardo Chevitarese, professor titular do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro ‘Jesus de Nazaré: O Que a História Tem a Dizer sobre Ele’, entre outros. “E o caso do bacalhau tem a ver com a colonização portuguesa.”
“A chave para pensar essa questão, se não é econômica, tem a ver com a questão religiosa. Por isso é tão tensa essa questão. Nem todo cristão faz jejum ou abre mão de comer carne vermelha durante a Semana Santa. O que leva alguém a consumir ou não carne vermelha diz respeito a olhares, formas de se ler teologicamente o que vem a ser o sacrifício de Jesus na cruz”, completa ele.
É por isso que a abstinência de carne suscita comentários que vão desde o “a Igreja Católica proibiu sem base bíblica” aos que defendem que regulamentações oriundas de documentos ou da tradição católica estariam, sim, ancoradas pelos ensinamentos dos livros sagrados, como contextualiza Chevitarese, em “simbologias teológicas do ato do sacrifício de Jesus”.
“Ou seja: eu não discutiria questões econômicas, mas pensaria em simbologias”, conclui ele.
E aí há algumas questões que precisam ser levadas em conta: a prática do jejum, o simbolismo do peixe, o prazer de comer carne vermelha e, por fim, a disseminação do bacalhau no mundo lusitano
Jejum
“Tudo começa, na verdade, com o jejum”, afirma à BBC News Brasil a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Desde os primeiros séculos do cristianismo tal prática é observada, mas sem focar em um alimento específico. Até porque, na era primitiva do cristianismo, havia essa preocupação de romper com as práticas judaicas em alguns aspectos, embora a influência, do ponto de vista cultural, fosse mais que evidente. É na Idade Média que se começa a desenhar tal preceito.”
Chevitarese ressalta que desde os primeiros cristãos já havia uma reflexão sobre “pensar o sacrifício de Jesus” experimentando alguma forma de abstinência.
“A ideia de jejuar, de ter uma ascese, representaria, sob muitos aspectos, uma austeridade, um autocontrole diante dos prazeres humanos, sempre em dimensão ao sacrifício feito por Jesus na cruz”, pontua.
O historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, ressalta que essa ideia de jejum, no catolicismo, está ligada ao sacramento da penitência, ou seja, um sacrifício feito para a remissão dos pecados. “No catolicismo, é um conceito que trabalha de modo muito forte com a ideia de reconciliação.”
Ora, a quaresma é, por assim dizer, o momento perfeito para a ocorrência dessa experiência religiosa. “Porque é um período de perdão, de reconstrução. E é dentro dessa lógica toda que aparece a abstinência da carne, como um símbolo dessa vida que pede para ser reconciliada”, acrescenta Moraes.
Afinal, a simbologia está na narrativa: a quaresma é o percurso que resulta na Páscoa. E a Páscoa, a festa da ressurreição, seria o ápice dessa história de renovação, essa possibilidade de que cada um se torne um novo ser humano.
Moraes aponta que essa prática de abstinência não costuma ser seguida por cristãos protestantes, evangélicos ou de outras denominações. Segundo ele, a raiz dessa diferença está justamente na questão dos sacramentos — se para os católicos, são sete, incluindo a penitência ou arrependimento dos pecados, protestantes têm apenas dois: batismo e eucaristia.
Peixe
Mas se a ideia é jejuar, por que o peixe seria permitido?
São muitas as explicações que, somadas, resultam numa unânime permissão. Em primeiro lugar, é preciso lembrar como peixes eram importantes no contexto do Jesus histórico, ou seja, no dia a dia daquelas comunidades do Oriente Médio de cerca de 2 mil anos atrás.
Não à toa, os primeiros seguidores de Jesus são apresentados, nos evangelhos, como pescadores. “Ele tinha entre os discípulos, pescadores. É lógico que o peixe é um alimento importante na cultura judaica. Mas não há uma relação explícita, direta, [disso com a ideia da troca da carne pelo peixe]”, diz Moraes.
O que há, lembra Chevitarese, é uma questão ortográfica. Peixe, no grego antigo, era ichthys. Os cristãos primitivos, naqueles tempos em que eram perseguidos por sua fé, decidiram usar o peixe como símbolo atribuindo à palavra um acrônimo: Iesous Christos Theou Yios Soter, que significa Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador.
“Assim, o consumo do peixe também passa por um conjunto de simbolismos, na experiência, na prática cotidiana de muitos cristãos”, argumenta o historiador. “As letras que compõem a palavra ichthys formam o sentido que está muito relacionado ao cristianismo”, afirma. “Este peixe é, por si só, simbolicamente algo que se remete a Jesus como salvador.”
Carne vermelha
OK, havia a prática do jejum, já disseminada. E havia o hábito do peixe, acrescido da simbologia toda. Mas qual o problema com a carne vermelha, afinal?
A teoria mesmo veio apenas no século 13, graças ao filósofo, teólogo e frade italiano São Tomás de Aquino (1225-1274), um dos grandes pensadores do mundo medieval.
“Quando ele prescreveu uma orientação aos fiéis a respeito do jejum, apontou a carne como um dos alimentos mais prazerosos, juntamente com os laticínios”, conta Medeiros. “Fez isso porque o jejum era concebido como o ato de se abster de algo que mais se gostava, não necessariamente privar-se de carne. Mas a carne, em si, por satisfazer o prazer do paladar, estava muito associada à luxúria, aos pecados sexuais, comumente chamados de ‘pecados da carne’.”
“A teologia [da abstinência de carne vermelha] foi trazida por Tomás de Aquino”, concorda Chevitarese.
Medeiros atenta para a recorrência de exemplos que confirmam essa ideia. Por exemplo, a regra de São Bento, documento atribuído ao monge São Bento de Núrsia (480-547) e que rege a ordem beneditina. “Exigia que os monges só comessem carne em caso de necessidade extrema ou por questão de saúde”, afirma a estudiosa do catolicismo.
Ela conta que o tema foi muito debatido em sínodos da Igreja ao longo de séculos. “Foi colocado em questão, inclusive, se a carne moída e o presunto poderiam ser consumidos no lugar da carne [em si] porque, uma vez triturados, teriam perdido suas propriedades ‘carnosas’”, exemplifica Medeiros.
“Por fim, na Idade Média, os fiéis observavam o chamado ‘jejum magro’, que previa a abstinência de carne em várias épocas do ano, incluindo na sexta-feira”, conta a pesquisadora. A regra atual consta de dois documentos do Vaticano: o Código de Direito Canônico de 1917 e a Constituição de 1966, do papa Paulo VI (1897-1978).
Não são poucos os artifícios retóricos que buscam explicar a diferença entre carnes de diversos bichos, de modo a autorizar o consumo do peixe e proibir o de outros animais, por exemplo. “Há o elemento do peixe como uma carne cujo sangue é frio, em detrimento ao sangue quente da carne vermelha dos bovinos e do frango”, comenta Chevitarese.
As nuances não são muito claras tampouco na hora de definir o que é um peixe ou não. Nesse sentido, a religião não necessariamente bebe nas fontes da ciência. “Na tradição judaica, o peixe seria o animal que tem escama e barbatana. Embora consideremos peixes muitos outros animais marinhos que não necessariamente tenham escama e barbatana”, explica o historiador.
Ele relata que já se deparou com entendimentos bastante afrontosos ao conhecimento taxonômico. “Por exemplo, em Nova Orleans [nos Estados Unidos] houve um bispo que disse que jacaré deve ser considerado um peixe. Então os católicos de lá podem comer carne de jacaré na Sexta-Feira Santa”, conta. “Tem culturas que encaram a capivara como peixes, então católicos podem comer capivara na quaresma. E em Quebec [no Canadá], um bispo disse que castores também são peixes…”
“Então, a regra varia muito sobre o que é peixe (no âmbito religioso), como definir o que é peixe…”, acrescenta ele. “Há muitas brechas.”
Bacalhau
“Não há nenhuma prescrição da Igreja sobre o uso do bacalhau”, frisa Medeiros. Ela vai direto ao ponto: a tradição pegou no Brasil “simplesmente porque fomos influenciados pelos costumes portugueses”. Ora, pois…
“Eles trouxeram a iguaria para cá no século 19. Por ser considerado um peixe de longa conservação, muitos fiéis o consumiam durante toda a quaresma”, acrescenta ela.
Aí parece estar o pulo do gato — ou o salto do peixe. Em tempos anteriores à invenção da geladeira, sobretudo em que a quaresma ocorre no verão, como o Brasil, era preciso facilitar essa ideia de comer peixe.
Como o bacalhau costuma ser curado, em um processo com adição de sal e desidratação, ele é um produto que pode ser conservado por mais tempo sem refrigeração. Em resumo: não foi por fé no bacalhau, foi por puro pragmatismo.
O historiador Chevitarese explica que o consumo do bacalhau foi trazido ao Brasil com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. Aos poucos, a iguaria começou a estar disponível nos famosos empórios de secos e molhados.
“A lógica da penitência impõe ao fiel que ele obedeça, de livre e espontânea vontade, a um momento penitencial importante”, enfatiza Moraes. “A Páscoa é uma excelente oportunidade para isso. Na Sexta-Feira Santa, então, o sujeito faz essa substituição [da carne pelo bacalhau], que é uma coisa histórica, tradicional.”
“Somos um país criado sob a influência do catolicismo, então essa observância dos fiéis católicos vem desde a época da colonização e é algo muito evidente, ancorado pela orientação dos padres daqui. E o peixe [o bacalhau] apareceu como uma tradição da própria corte portuguesa”, diz ele.
O teólogo sintetiza: se o ritual da abstinência veio com a colonização, a prática se acentuou com a chegada da corte portuguesa ao Rio.
“Então o bacalhau, com praticidade de algo que fazia parte da culinária portuguesa e não se estragava com facilidade, foi inserido. E aquilo foi sendo ressignificado ao longo do tempo”, comenta.
Sim, porque com todos os ingredientes, é a hora de lembrar da frase bíblica que apregoa que as coisas de Deus devem ser deixadas a Deus e as coisas de César, a César. Porque o deus mercado é capaz de fazer perpetuar as mais diversas tradições inventadas…
“O consumo do bacalhau, trazido pela corte, caiu no gosto do brasileiro. Vivemos num modo de produção capitalista e quando algo cai no gosto da prática mercantilista comercial, tudo vira mercadoria: tem gente que vende e gente que consome”, reflete Moraes. “Então está aí: ficou sendo uma prática muito explorada até hoje. E os vendedores de peixe agradecem.”
Fonte: bbc.com