O investimento estrangeiro foi um dos pilares do “milagre econômico” na China, país que em quatro décadas tirou 850 milhões de pessoas da pobreza.
Após a morte de Mao Tsé-tung em 1976, o comunismo mais ortodoxo deu lugar a uma abordagem pragmática do desenvolvimento econômico e, três anos depois, o país abriu suas portas ao investimento estrangeiro.
Nas décadas seguintes, a entrada de capitais cresceu exponencialmente, com o PIB chinês expandindo a uma taxa média superior a 9% ao ano.
Mas agora essa tendência de longo prazo começou a se reverter.
O investimento estrangeiro na China vem despencando desde o início deste ano, especialmente desde a invasão russa da Ucrânia
Somente entre janeiro e março, investidores estrangeiros retiraram cerca de US$ 150 bilhões (cerca de R$ 760 bilhões) em ativos financeiros em yuan, principalmente em títulos.
“Embora a China tenha registrado entradas (de capitais) em janeiro, as saídas de fevereiro e março foram tão grandes que tornaram o primeiro trimestre o pior já registrado. A fuga continuou em abril”, indica o relatório de maio do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês).
A entidade com sede em Washington prevê uma saída de ativos da China de US$ 300 bilhões este ano, mais que o dobro dos US$ 129 bilhões em 2021.
Analisamos quais são as quatro principais causas desta tendência, se ela veio para ficar, que consequências terá e como as autoridades chinesas estão reagindo.
1. A estratégia “covid zero”
“As políticas de ‘covid zero’ estão levando a China a uma contração semelhante à da primeira onda da pandemia”, disse à BBC o economista espanhol Juan Ramón Rallo.
Mais de dois anos após o início da pandemia, a maioria dos países retirou as restrições devido à covid. Mas na China é diferente.
O governo impôs confinamentos rígidos em Xangai — que responde por 5% do PIB nacional. E em outras cidades, ele reforçou medidas anticovid, reduzindo a atividade empresarial.
Assim, o desemprego nas cidades ultrapassou 6%, sua economia contraiu 0,68% em abril e poucos acreditam que a China atingirá a meta de crescimento para este ano de 5,5%, número que já é discreto em relação aos anos anteriores.
“Muitas empresas ainda veem a China como um mercado importante, mas hoje é difícil manter esse otimismo enquanto o resto do mundo se abre e a China permanece fechada”, diz Nick Marro, analista da Economist Intelligence Unit (EIU) em Hong Kong.
Marro acredita que a estratégia “covid zero” não estimula investidores a apostarem na China “já que as regras podem mudar repentinamente, sem aviso prévio, o que dificulta ainda mais o planejamento e as decisões sobre investimentos futuros”.
“A grande questão é se os investidores estrangeiros veem o ‘Covid Zero’ como um problema temporário que podem tolerar. Quanto mais tempo essa política continuar, maior será essa intolerância.”
2. A crise imobiliária
No entanto, o setor está em crise desde o ano passado devido ao forte endividamento das gigantes locais, como a Evergrande.
Embora a crise imobiliária na China venha de antes, os temores dos investidores estrangeiros sobre suas consequências na saúde econômica do país em combinação com os efeitos do “covid zero” e outros fatores são mais recentes.
“Nos últimos 10 anos, a China cresceu com base no crédito barato e na bolha imobiliária”, lembra o professor Rallo.
Após o estouro dessa bolha, explica ele, o país está imerso em uma mudança no modelo produtivo que ele descreve como “complicada”.
“A digestão de uma bolha imobiliária de tal magnitude é um processo lento e doloroso, ainda mais se não se permite um ajuste rápido, como o Partido Comunista Chinês parece estar fazendo.”
Conscientes deste problema, as autoridades chinesas tomaram algumas medidas para revitalizar o mercado imobiliário, incluindo vários cortes nas taxas de juro do financiamento habitacional através de decreto do banco central do país.
Isso coloca a China como um dos poucos países que vai contra a maré: enquanto o Banco Central Europeu (BCE) e o Federal Reserve anunciam aumentos de juros para combater a inflação, Pequim recorre a estímulos para aliviar sua crise imobiliária e revitalizar sua economia — aposta que muitos considerar arriscado em plena escalada de preços em nível global.
3. Rússia, tensões geopolíticas e direitos humanos
A invasão da Ucrânia custou à Rússia o isolamento econômico do Ocidente com sanções de magnitude que ninguém imaginaria para um país tão importante.
A guerra levou muitos investidores a se perguntarem o que aconteceria com seus ativos na China se Xi Jinping lançasse uma operação militar em Taiwan, reprimisse um levante popular em Hong Kong pela força ou decidisse resolver disputas territoriais com vizinhos pela força das armas.
A posição da China no conflito ucraniano — mais próxima da Rússia — também não ajuda.
“Os mercados estão preocupados com os laços da China com a Rússia — isso está assustando os investidores e a aversão ao risco está em evidência desde o início da invasão”, disse Stephen Innes, sócio-gerente do serviço de investimentos SPI Asset Management, para a Bloomberg.
“Todo mundo começou a vender títulos chineses, então estamos felizes por não termos comprado nenhum.”
O professor Rallo, por sua vez, destaca a tendência de regionalização do comércio global com duas grandes áreas de influência: Europa-EUA, por um lado, e China-Rússia, por outro.
Assim, para as empresas ocidentais “ter parte de sua cadeia de valor no outro bloco pode ser uma desvantagem”, então algumas delas optariam por abrir mão desses mercados.
O analista Nick Marro também destaca “o aprofundamento do cisma entre a China e o Ocidente em questões como competição econômica e estratégica, bem como valores democráticos e direitos humanos”.
Um bom exemplo disso é o Norges Bank Investment Management, da Noruega, o maior fundo soberano do mundo que administra ativos de 1,3 trilhão de dólares. Em março, o fundo excluiu as ações da empresa chinesa de roupas esportivas Li Ning pelo “risco inaceitável” que “contribui para graves violações dos direitos humanos”.
4. A ofensiva contra o setor privado
No entanto, observa Nick Marro, “muito da agenda de reformas que poderia beneficiar tanto as empresas privadas estrangeiras quanto as locais estagnou”.
A tendência recente de protecionismo e intervenção acontece em vários setores, mas sobretudo na tecnologia, “onde as preocupações de segurança nacional superam todo o resto”, diz.
O exemplo mais claro é a ofensiva iniciada em 2021 contra as grandes empresas de tecnologia chinesas, que os críticos atribuem à vontade do Estado de controlar o setor. Isso afetou o valor de empresas de renome mundial, incluindo o Alibaba.
A corporação do bilionário Jack Ma foi uma das mais atingidas pela campanha regulatória de Pequim, que em abril do ano passado impôs a maior multa antitruste da história do país, no valor de cerca de US$ 2,8 bilhões.
Segundo o analista, o governo chinês está dando cada vez mais poder às entidades estatais, o que pode contrariar seu objetivo de reanimar o crescimento econômico.
Nas últimas semanas, a agência Reuters e a Bloomberg citaram fontes do setor que dizem que Pequim planeja corrigir sua política sobre empresas de tecnologia, embora o governo não tenha confirmado isso oficialmente.
Desenvestimento tem limite?
Os índices de ações chineses também não têm dado bons retornos aos investidores nos últimos meses.
O Shanghai CSI300 atingiu o fundo do poço no final de abril e desde então se recuperou ligeiramente, embora ainda esteja longe de seus níveis no início do ano.
A curva descendente dos índices chineses não é muito mais acentuada do que a de seus equivalentes nos EUA e na Europa, que também se depreciaram desde o início do ano após atingirem máximas em 2021.
O superávit comercial da China ultrapassou US$ 200 bilhões no primeiro trimestre. Embora isso aconteça em parte por causa da queda nas importações, a reserva é considerável e ajuda o país a resistir melhor às retiradas de investimentos estrangeiros.
Nesse contexto, descreve o IIF em seu relatório, as saídas de capitais da China não estão colocando em risco a solvência do país, que não necessita de moeda estrangeira para cumprir suas obrigações externas.
A instituição também considera que a onda de desinvestimentos na China tem limites.
“Embora vejamos empresas de alto perfil anunciando planos para deixar o mercado, não devemos entender isso como um êxodo. Muitas dessas empresas estão na China há décadas e elas não será fácil ou rápida a decisão delas de deixar esse mercado ,” ele diz.
Em editorial recente, a revista The Economist aponta para o próximo Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCC), marcado para outubro, como o ponto de virada que pode dar um novo foco à economia chinesa e apresentar uma perspectiva diferente para os investidores estrangeiros.
“A visão otimista é que esse período sombrio de ideologia, erros políticos e crescimento lento faz parte da preparação para o congresso do partido. Quando isso passar, os pragmáticos terão mais controle da política, a ‘covid zero’ acabará e voltará o apoio à economia e à tecnologia”.
Fonte: bbc.com