Divergências giram em torno do escopo das demandas a serem apresentadas pelo Mercosul no capítulo do tratado de livre comércio que trata especificamente de compras governamentais
Os próximos passos do Mercosul na negociação de um acordo de livre comércio com a União Europeia geraram um racha no governo brasileiro.
Nesta sexta-feira (14), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu aval à sugestão de resposta do Brasil para a “side letter” –protocolo adicional ao acordo fechado em 2019– da UE, segundo fontes.
Esse rascunho foi encaminhado aos demais sócios do Mercosul e deverá ser transformado, em algumas semanas, numa contraproposta oficial do bloco sul-americano aos europeus.
O caminho para isso tem sido tortuoso em Brasília. Nos bastidores, duas alas com visões diferentes se cristalizaram na Esplanada dos Ministérios.
As divergências giraram em torno do escopo das demandas a serem apresentadas pelo Mercosul no capítulo do tratado de livre comércio que trata especificamente de compras governamentais.
De um lado, o Ministério do Planejamento lidera a defesa da necessidade de ajustes naquilo que foi negociado em 2019, mas sem ampliar demais o leque de demandas.
Essa avaliação foi seguida por outras duas pastas: Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (comandada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin) e Agricultura.
Outro grupo acha que os termos adotados no acordo impedem os países do Mercosul de usar compras públicas como uma forma de estímulo às suas indústrias nacionais e tem argumentado em prol de uma revisão mais abrangente.
Fazem parte desse grupo o Itamaraty, a Assessoria Especial da Presidência da República, o Ministério da Saúde, o Ministério de Ciência e Tecnologia, o Ministério de Gestão e Inovação.
A Fazenda tem simpatia por esses argumentos, mas adotou uma posição mais intermediária e conciliatória. Nos últimos dias, a CNN conversou com altos funcionários de cinco ministérios sobre a resposta brasileira à UE.
Uma ala é chamada de “protecionista” nos debates internos. Outra recebeu o apelido jocoso de “entreguista”. A Casa Civil, responsável por coordenar um posicionamento do governo, não se pronunciou formalmente.
O que está em jogo
O princípio de qualquer capítulo sobre compras governamentais, em tratados de livre comércio, é garantir “tratamento nacional” aos fornecedores estrangeiros de bens e serviços contratados pelos diversos níveis da administração pública.
O mercado de aquisições públicas costuma representar de 10% a 15% do PIB de grandes economias. Na UE, alcança o equivalente a US$ 1,6 trilhão por ano. No Brasil, estima-se que fique em torno de US$ 150 bilhões anuais.
O acordo UE-Mercosul garante a liberalização em uma série de licitações brasileiras. Por exemplo:
- Licitações de bens em contratos com valor total a partir de R$ 2,3 milhões (no início da vigência do acordo), diminuindo gradualmente até R$ 900 mil (após 15 anos de vigência do acordo);
Licitações de serviços de construção e concessões de obras públicas em contratos com valor total a partir de R$ 55,2 milhões (no início da vigência do acordo), diminuindo gradualmente até R$ 34,5 milhões (após seis anos de vigência do acordo);
Licitações de outros serviços –como consultoria em gestão, limpeza predial, saneamento, pesquisas de mercado– em contratos com valor total a partir de R$ 2,3 milhões (no início da vigência do acordo), diminuindo gradualmente até R$ 900 mil (após 15 anos de vigência do acordo).
No entanto, como em qualquer acordo de livre comércio, existem exceções às regras gerais. No caso do que foi negociado entre UE e Mercosul, não é pouca a quantidade de exceções. Ficam de foram da abertura:
- Licitações realizadas por quaisquer órgãos de governos estaduais e municipais;
- Licitações realizadas por quaisquer empresas estatais e fundações públicas;
- Licitações para compras de alguns bens específicos, como certos equipamentos de construção e mineração, colheitadeiras, acessórios para caminhões e tratores, aparelhos de ar-condicionado, pesticidas, gases comprimidos ou liquefeitos;
- Licitações para diversos produtos têxteis, quando se tratar de compras do Ministério da Defesa e do Ministério da Educação, como uniformes infantis e fardas militares;
- Licitações relativas a parcerias público-privadas envolvendo produtos e insumos da lista estratégica do SUS;
- Licitações relativas a programas de segurança alimentar e alimentação escolar, em apoio à agricultura familiar;
Além disso, o governo brasileiro poderá continuar aplicando margem de preferência de 10% a 25% para micro e pequenas empresas.
Isso significa que, em uma licitação aberta à concorrência europeia, micro e pequenas companhias nacionais ainda poderão ser declaradas vencedoras mesmo oferecendo preços de 10% a 25% superiores aos estrangeiros.
Razões da discórdia
O grupo tachado como “entreguista”, por suas posições mais flexíveis, reconhece a necessidade de ajustes no capítulo sobre compras governamentais.
É consenso, por exemplo, que será preciso fazer mudanças na cláusula de “offsets” –contrapartidas impostas a fornecedores para a compra de bens ou serviços, que podem ser índices mínimos de conteúdo local ou obrigações de transferência tecnológica daquilo que foi adquirido.
O acordo UE-Mercosul preserva temporariamente, ao governo brasileiro e aos demais países do bloco sul-americano, a prerrogativa de exigir “offset”.
No caso do Brasil, vale para compras de ministérios como Defesa, Saúde, Transportes, Portos e Aviação Civil, Minas e Energia, Ciência e Tecnologia.
O grande “problema”, na visão dos negociadores do Mercosul, é que essa prerrogativa de exigir contrapartidas tem prazo de validade para acabar: 15 anos a partir da entrada em vigência do acordo.
O grupo mais flexível, no entanto, acha que o acordo requer apenas ajustes no capítulo de compras e desaconselha uma negociação mais ampla.
Acredita que isso pode também estimular os europeus a barganhar novas concessões do Mercosul e foge do espírito de uma “side letter”, um protocolo adicional, cujo objetivo é apenas aperfeiçoar o que já foi negociado.
A outra ala do governo vinha defendendo revisões maiores e vinha observando, nas reuniões internas, que o acordo pode impor restrições das quais o Brasil se arrependerá mais tarde.
Entre elas, compras de medicamentos e insumos no setor de saúde. A escassez de remédios, máscaras e respiradores na pandemia de covid-19 foi citada como um dos estragos que a ausência de políticas industriais no setor pode provocar.
A ala liderada pelo Planejamento, Desenvolvimento e Agricultura vê essas preocupações como exageradas. Diz nos bastidores, por exemplo, que o acordo UE-Mercosul não imporá restrição para a compra de medicamentos ou equipamentos hospitalares nacionais.
A grande maioria das compras, afirmam essas fontes, é feita por Estados e municípios –com repasses do Orçamento Geral da União. A EBSERH, estatal que gere os hospitais universitários federais, entra na lista de exceções.
Fonte: cnnbrasil.com.br