Em setembro de 1973, Neftalí Reyes, conhecido por todo o mundo como Pablo Neruda, foi hospitalizado nas Clínicas Santa María, de Santiago do Chile. Justamente naquele momento, iniciava-se no país sul-americano uma ditadura que duraria 17 anos.
Em meio a esse obscuro momento da história chilena, morreu o célebre poeta, em circunstâncias suspeitas. O boletim médico dizia que a causa fora um câncer de próstata de que padecia desde 1969. Porém, curiosamente, o óbito ocorreu exatamente um dia antes de Neruda viajar para o exílio no México.
Suspeitas sobre a causa da morte sempre estiveram presentes, já que o Nobel de Literatura de 1971 era uma presença incômoda para o regime do ditador Augusto Pinochet. No entanto o caso permaneceu nebuloso, até que, em 2011, o Partido Comunista do Chile apresentou uma denúncia para que se iniciasse uma investigação: o chofer de Pablo Neruda assegurava que ele fora assassinado.
Em 2013, o corpo do escritor foi exumado para um exame de seus ossos. Na ocasião, não se encontraram agentes químicos relevantes. Entretanto, quatro anos mais tarde, uma segunda análise, realizada por 16 peritos de diversos países e disciplinas detectou a presença da bactéria Clostridium botulinum, considerada arma biológica se aplicada a seres humanos.
Solução de um mistério de cinco décadas?
O sobrinho do poeta Rodolfo Reyes, advogado querelante no inquérito para esclarecer a causa da morte, conta à DW: “Em 2017 se encontrou uma grande quantidade de Clostridium botulinum nos ossos, especialmente num molar que permanecia intato. Também se confirmou que Neruda tinha câncer, mas não foi isso que lhe tirou a vida.”
Com base nesse achado, ordenou-se uma nova autópsia para determinar se a Clostridium ocorrera por contaminação exógena ou endógena. “O boletim entregue em 28 de janeiro deste ano [2023] pelos laborátorios das universidades McMaster, do Canadá, e Copenhague, da Dinamarca, concluíram que a bactéria não se infiltrou no cadáver a partir do exterior, mas que ele já a tinha antes de morrer, ela estava no seu corpo. Isso resulta categórico para nós e confirma que Neruda foi assassinado”, afirma Reyes.
No entanto, a investigação ainda continua. Segundo a advogada Elizabeth Flores, querelante e representante da família do poeta, “esta luta começou, e sempre se buscou estabelecer a verdade do que ocorreu com Pablo Neruda”.
“Aqui há uma questão de família, mas, independente disso, esse é o falecimento de um Prêmio Nobel, de um ex-embaixador, um ex-senador, candidato presidencial, de um homem que aglutinava a cultura e o pensamento crítico e político ao redor de si.”
“Se decidimos revelar o conteúdo do informe, que todos os outros advogados também têm em suas mãos, é porque, lamentavelmente, no Chile há uma certa vontade de que não transpire”, afirma a jurista. “Nós informamos literalmente o que diz o boletim, agora a história tem que se fazer através do conteúdo.”
Em 15 de fevereiro foi entregue a última revisão dos peritos sobre o boletim elaborado pelos laboratórios estrangeiros. Agora cabe à juíza Paola Plaza dar seu veredito sobre se Neruda foi envenenado ou não.
Antes de receber os documentos finais, a magistrada enfatizou à imprensa que se está apenas em fase de investigação: “Não já prazo estabelecido por lei para ditar uma resolução. Esta é uma diligência entre inumeráveis diligências de prova que se realizaram em uma década.”
Poesia que transcende a morte
Nos meios culturais, Roberto Ippolito, autor de Delito Neruda, saudou o resultado preliminar do boletim, pois a verdade sobre essa morte era “uma dúvida” que pairava sobre o famoso poeta. O jornal argentino Página 12 comenta que o fato evidencia “a magnitude dos delitos cometidos pela ditadura” de Pinochet.
No Chile, o escritor Jorge Edwards, de 91 anos, se disse surpreso pelas revelações científicas sobre a morte do amigo, registra o veículo La Tercera. No mundo político, por outro lado, aparentemente reina silência sobre as conclusões da análise dos restos mortais do autor de Canto geral e Confesso que vivi, entre numerosas outras obras.
A certeza do sobrinho Rodolfo Reyes, entretanto, é inabalável: “Agora a ciência falou. Os laboratórios determinaram se injetou a bactéria em Neruda, portanto a conclusão lógica é que isso o matou. É uma grande pena terem assassinado esse homem, que deixou um enorme legado com sua obra. Pelo menos sei que o poder de seus versos nunca se apagará.”
He renacido muchas veces, desde el fondo / de estrellas derrotadas, reconstruyendo el hilo / de las eternidades que poblé con mis manos, / y ahora voy a morir, sin nada más, con tierra / sobre mi cuerpo, destinado a ser tierra”
(Renasci muitas vezes, desde o fundo / de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio / das eternidades que povoei com minhas mãos / e agora vou morrer, sem nada mais, com terra / sobre meu corpo, destinado a ser terra)
Fonte: dw.com