Vidas Secas, Angústia, São Bernardo e todos os outros livros escritos por Graciliano Ramos (1892-1953), um dos maiores nomes da literatura nacional, estão em domínio público a partir desta segunda-feira (01/01). Conforme prevê a legislação brasileira, não é mais necessário o pagamento de direitos autorais aos herdeiros de um autor a partir do ano seguinte ao septuagésimo aniversário da morte do mesmo.
A expectativa é que diversas reedições surjam dos títulos mais famosos de Graciliano. Sua obra também poderá ser baixada gratuitamente no portal Domínio Público, biblioteca digital mantida pelo Ministério da Educação.
Segundo o jurista Gustavo Martins de Almeida, advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livro (SNEL), a integridade da obra segue protegida. “Após os 70 anos [da morte], a obra pode ser livremente reproduzida. No entanto, há um direito moral que implica na integridade da obra, isto é: seu conteúdo não poderá ser alterado”, explica.
“Precisam ser resguardados os direitos morais, ou seja, a obra tem de continuar sendo creditada ao autor e a sua integridade, mantida”, completa o jornalista Leonardo Neto, especializado em mercado editorial e curador de eventos como a Bienal do Livro de São Paulo. “Nenhuma modificação que possa prejudicar a obra ou atingir a reputação ou honra do autor pode ocorrer.”
Adaptações para outras plataformas podem ser feitas sem necessidade de autorização dos herdeiros. “Nestes casos, incidem novos direitos autorais aos adaptadores”, afirma Neto. “Por exemplo, se um quadrinista desejar adaptar Vidas Secas para uma HQ, ele e o roteirista deverão receber pelos direitos autorais. A legislação prevê que, em casos de adaptações e outras transformações de obras originais, ela passa a ser considerada uma criação intelectual nova.”
Nesses casos, a lei define que o adaptador é titular dos direitos de autor e ele não pode se opor a outra adaptação. “Ou seja, em tese, as possibilidades de adaptação se tornam infinitas”, comenta o curador.
“A legislação não impõe o que pode ou não ser alterado, desde que mantidos os direitos morais do autor”, diz ele. “Ou seja, ninguém poderá reescrever as histórias sem colocar na capa que se trata de uma adaptação feita a partir da obra de Graciliano Ramos.”
Família critica a lei
Neto de Graciliano, o escritor Ricardo Ramos Filho conta que a família vinha se preparando há tempos para esta transição. Anos atrás, houve a renovação do contrato firmado entre os herdeiros e a editora Record, que publica a obra completa do autor. “E fizemos um contrato mais longo. A editora vai continuar pagando direitos autorais à família até 2029″, relata.
Ramos Filho frisa que toda reedição tem o acompanhamento da família, com o objetivo de zelar pela qualidade final. “Sabemos que [agora] muitas editoras vão publicar sem maiores cuidados, pensando só no lucro. E claro que nós não gostamos disso”, comenta ele.
“A lei do domínio público, eu usaria uma palavra muito forte para definir o que eu penso, acho que é uma excrescência”, afirma Ramos Filho. Seus argumentos são de que a legislação só serve para aumentar os lucros daqueles que exploram as obras do autor.
Ele diz que aprova o fato de que a partir de agora qualquer pessoa pode acessar livremente a obra a partir de uma biblioteca on-line, completamente grátis. “Para isso, não precisaria nem esperar 70 anos, 50 já estava bom. Acho importante que as pessoas possam acessar a obra do autor sem pagar, é importante para que ele seja lido e divulgado. Isso é domínio público.”
O problema, para o herdeiro, é a comercialização. “A partir de janeiro, qualquer editora vai poder publicar Graciliano sem pagar os 10% que pagavam de direito autoral para a família. O livro vai custar mais barato por causa disso? Não. As editoras vão poder publicar o autor, não vão pagar direito autoral e vão continuar cobrando a mesma coisa pelo livro”, avalia. “É isso que nos revolta. Mas, tudo bem: é lei,e lei a gente pode até não aceitar, mas a gente acata.”
“A lei de domínio público, da maneira como está posta, é uma falácia”, enfatiza.
Importância da obra
“Um clássico é um clássico e, justamente por isso, mantém a sua relevância. Vidas secas, por exemplo, se manteve por muitos anos como leitura obrigatória em vestibulares e frequentou listas dos mais vendidos”, salienta o jornalista Neto. “Do ponto de vista de mercado, isso demonstra a potência da sua obra.”
Para especialistas, o importante é a grandeza da obra dele no cânone da literatura brasileira. “A qualidade construtiva da obra de Graciliano a torna imortal, infinita para a humanidade, como toda grande obra de arte”, comenta o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Marcos Falchero Falleiros, estudioso dos trabalhos do autor.
“O grande ficcionista brasileiro da geração de 30 continua hoje atual e indispensável porque sua obra ainda toca em questões muito presentes na realidade brasileira […]: a pobreza, a exploração do homem pelo homem, a violência, os processos de enriquecimento e aquisição de poder por parte de uma classe dominante e opressora, os efeitos da miséria sobre a vida interior das pessoas e questões de natureza existencial como a inveja, o egoísmo, a insatisfação”, analisa o professor Emerson Calil Rossetti, doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua.
“É preciso deixar claro que, para além de uma obra ideologicamente engajada no que se refere à realidade social, Graciliano soube, como poucos, captar as nuances da personalidade humana por meio da estilização de personagens absolutamente ricas em substância humana”, completa. “Há um viés existencial muito interessante e asseguradamente atemporal em suas produções.”
A escritora e crítica literária Marisa Lajolo, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, ressalta que Graciliano “é unanimemente considerado pela crítica um dos maiores romancistas brasileiros”. “Sua linguagem é simples e direta”, destaca ela, acrescentando que os livros do autor, especificamente Vidas Secas e São Bernardo, “comovem os leitores pelo realismo com que retratam as condições de vida de trabalhadores rurais”.
“A alma de cada pessoa retratada por Graciliano Ramos era revelada claramente. Ele era direto no que tinha a dizer e imprimia um pouco de si mesmo nas reflexões dos tipos que criava. Isso fazia com que eles parecessem pessoas que, de fato, existem. Há honestidade e sinceridade em seus escritos”, comenta a professora Ana Sampaio Machado, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Fonte: dw.com