A historiadora brasileira Beatriz Nascimento (1942-1995) costuma ser apontada como uma das fundadoras do feminismo negro. Não apenas no Brasil, mas no mundo — pelo menos é como com frequência se refere a ela a ativista e filósofa americana Angela Davis, conhecida por sua atuação do Partido dos Panteras Negras, nos Estados Unidos.
De origem pobre, filha de uma dona de casa e de um pedreiro que tiveram 10 filhos, Nascimento conseguiu um diploma acadêmico em uma época de raros negros nas universidades brasileiras — e, ainda mais raro, mulheres negras. E não parou por aí: como historiadora teve um papel importante na retomada do movimento negro brasileiro, a partir dos anos 1970, e foi precursora em estudos sobre a mulher negra e no reconhecimento da importância sócio-histórica dos quilombos.
Aliás, o próprio conceito do que é quilombo mudou a partir dela. “A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou”, escreveu a pensadora.
De maneira científica, ela definiu os quilombos não apenas como espaço geográfico, mas dentro de uma dimensão simbólica como mundo criado pelos negros condenados à diáspora — afinal, se muitos quilombos foram destruídos pela repressão aos movimentos, os próprios corpos negros, com suas memórias, passaram a carregar os quilombos, no entendimento da historiadora.
O reconhecimento da titulação dasterras quilombolas brasileiras, que passou a ocorrer a partir de meados dos anos 1990, apoiou-se na fundamentação construída por Nascimento ao longo de duas décadas de pesquisa.
“Seus trabalhos, seus artigos produzidos desde os anos 1970, com seu conceito novo de quilombo e a maneira como ela tratava os papéis do homem negro e da mulher negra, há reflexões que hoje nos ajudam a reescrever a história do Brasil”, afirma a historiadora Martha Abreu, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Sua escrita da história, a partir da ótica da população negra, critica a ideia de democracia racial e explicita o racismo.”
História do povo negro, e não da escravidão
Beatriz Nascimento conseguiu ser aprovada no vestibular para o curso de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1969, quando tinha 28 anos. Estagiou no Arquivo Nacional e, depois, tornou-se professora na rede estadual de ensino.
Aliando militância e trajetória acadêmica, fundou o Grupo de Trabalho André Rebouças na UFF, congregando pesquisadores negros. Na instituição, fez sua pós-graduação. Vinculou-se a organizações ativistas, como o Movimento Negro Contra a Discriminação Racial e, na militância, mesclava seu próprio engajamento com o papel de pesquisadora do qual nunca se despia.
Em 1989, o resultado dessa trajetória foi transformado no documentário Ôrí, filmado e dirigido pela cineasta Raquel Gerber, com textos e narração da própria historiadora. O filme conta a história dos grupos que fizeram o movimento negro do Brasil nos anos 1970 e 1980. Nascimento disse que o processo de Ôrí era “uma recriação de identidade nacional através do movimento negro”. “Nós, na década de 70, éramos mudos. E os outros eram surdos. A partir de 70, começa a falar sociologicamente. E esta lógica estava embutida no processo da própria história do Brasil”, afirmou ela.
Nascimento deslocou o eixo dos estudos da negritude brasileira ao propor a necessidade de uma história do povo afro-brasileiro, e não a história da escravidão — que era o que se fazia. “Essa pesquisa militante foi o seu grande legado”, pontua o geógrafo e antropólogo Alex Ratts, professor na Universidade Federal de Goiás (UFG) e autor de, entre outros, Eu sou Atlântica: Sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento.
“Ela encontrou barreiras em sua época dentro do mundo acadêmico, mas felizmente hoje sua obra tem sido resgatada por uma nova geração de pesquisadores”, comenta o historiador e arqueólogo Luis Felipe Santos, presidente do Instituto AfrOrigens. “O mundo acadêmico foi e continua sendo um mundo extremamente branco.” A historiadora Abreu concorda que “Nascimento não tinha espaço na academia branca”.
Ratts acrescenta que era uma época em que “não existiam mulheres negras com tanta projeção” e Nascimento propunha uma discussão muito rica dos papéis de gênero dentro da história da população negra no Brasil — na época, não se usava o termo gênero, “falava-se de relações de raça e sexo”.
“Mas sempre houve uma discussão madura, entre as mulheres negras, sobre essas relações, a situação da mulher negra na escravidão, e também do homem negro. É um tipo de pensamento que não cabia e nem cabe nofeminismo de maioria branca que se consolida desde os anos 1970. As feministas negras têm de falar o que foi a escravidão, o que ocorreu com o corpo negro no período escravista”, pontua o antropólogo.
Feminicídio
Nascimento desenvolvia seu mestrado na UFRJ quando passou a aconselhar uma amiga, vítima constante de violência doméstica, a abandonar o companheiro, um homem com passagens policiais por acusações de homicídio, tentativa de estupro e envolvimento com drogas.
Incomodado e alegando que a historiadora estava interferindo em sua vida pessoal, esse homem deu cinco tiros e a matou em 28 de janeiro de 1995. Ela tinha 52 anos.
No dia 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra em todo o Brasil. Data é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro. A DW publica, até o dia 24 de novembro, uma série de perfis de personagens que deixaram marcas na história brasileira e que são pouco lembrados ou conhecidos.
Fonte: dw.com