As estradas que vão do sul do Líbano para a capital, Beirute, estavam congestionadas mesmo antes de os confrontos entre as forças militares de Israel e a organização militante islâmica Hisbolá, apoiada pelo Irã, eclodirem perto da fronteira libanesa-israelense na quarta-feira. “Milhares de moradores do sul deixaram a área por medo”, explica Lynn Zovighian, diretora-gerente de uma plataforma de investimento social na capital libanesa.
“No caminho para Beirute, ficamos surpresos com a quantidade de carros que iam para lá”, relatou Mariam Hoteit, dona de casa e mãe de cinco filhos, da cidade de Shakra, a apenas sete quilômetros da fronteira com Israel. “Observar as filas de carros em frente aos postos de abastecimento me lembrou das cenas da crise de escassez de gasolina de 2022.”
O Líbano atravessa uma série de crises que resultaram no colapso total da sua economia, com uma inflação de até 250% e um governo interino sem presidente. Segundo a ONG Human Rights Watch (HRW), quase 80% da população vive abaixo da linha da pobreza.
Grupo radical de olhos abertos
O Hisbolá está profundamente emaranhado na política e na vida pública libanesa. O grupo está dividido em um braço político e um militar, sendo o último enquadrado como grupo terrorista pela União Europeia, França, Kosovo e outros governos. O Hisbolá como um todo foi designado organização terrorista pelos Estados Unidos, Alemanha, Israel e vários outros governos.
O grupo detém 12% dos assentos parlamentares no Líbano e, mesmo depois de abandonar o governo após as eleições de 2022, mantém laços estreitos com os partidos no poder. Também financia hospitais e gere seus próprios bancos com acesso a dólares americanos.
Dada a importância política e militar do grupo no Líbano, é razoável afirmar que a sua liderança está acompanhando de perto o desenrolar dos acontecimentos em Israel e em Gaza, depois do Hamas – também uma organização apoiada pelo Irã e designada terrorista por diversos governos – realizar um ataque em grande escala contra Israel no sábado.
No domingo, o Hisbolá lançou um ataque transfronteiriço de pequena escala às Fazendas Shebaa, região desabitada cuja soberania é disputada pelo Líbano e por Israel.
“Essa foi uma maneira de sinalizar que estão atentos e ativos sem desencadear uma retaliação imediata de Israel”, analisa Heiko Wimmen, diretor de projetos no Líbano da organização não governamental de prevenção de conflitos International Crisis Group.
“Eles mostraram que são capazes de atacar se quiserem. A posição do Hisbolá é clara neste momento: eles não estão interessados em se envolver diretamente neste conflito, desde que não haja ataque do lado israelense, ou algum ato que possa ser percebido como uma ultrapassagem de limite.”
Para Wimmen, essa ultrapassagem poderia ser forçar um grande número de habitantes de Gaza a irem para o Egito, ou a destruição completa do Hamas.
Já de acordo com a pesquisadora libanesa do Conselho Europeu de Relações Exteriores, Kelly Petillo, a transgressão de limite para o Hisbolá pode ser “os níveis de violência [israelense] em Gaza se tornarem muito intensos, qualquer que seja a definição de intenso do grupo”.
“Mas, até agora, acho que ainda estamos nos limites de um envolvimento contido e de nenhuma violação das linhas vermelhas”, disse Petillo, considerando a série de mísseis que o grupo disparou contra Israel na terça-feira, o fogo de artilharia de resposta das Forças de Defesa de Israel, e as crescentes tensões na fronteira Israel-Síria.
“Ambos os lados retaliam proporcionalmente ao ataque do outro, portanto parece que ambos continuam a evitar a escalada do conflito”, avalia Wimmen.
Perigo de alastramento para toda a região
A escalada no Oriente Médio forçaria os aliados do Hamas – Irã, Rússia e Síria – a agirem, envolvendo toda a região num conflito sangrento. Os EUA já enviaram navios de guerra, numa demonstração de apoio ao aliado Israel.
“Se o irmão mais novo, o Hamas, foi capaz de realizar tal ataque, os israelenses têm de considerar o que o irmão mais velho, o Hisbolá, é capaz de fazer”, aponta Wimmen.
O especialista destaca o poderio do grupo extremista libanês: ” O Hamas disparou cerca de 5 mil foguetes contra Israel durante o fim de semana. O Hisbolá, por outro lado, já tinha um arsenal de pelo menos 150 mil mísseis há cinco anos, e quem sabe quantos eles têm agora?”
Nathan Brown, professor de ciência política e assuntos internacionais da Universidade George Washington, não crê que Israel vá iniciar hostilidades no curto prazo, mas, se o Hisbolá o fizer, o país pode responder com muita força.
“Existe um perigo no longo prazo. Se Israel começar a tratar o Hisbolá, o Hamas e o Irã como uma ‘ameaça estratégica conjunta’, a perspectiva de escalada também aumenta”, aponta Brown. Entretanto, os grupos e milícias apoiados pelo Irã prepararam-se justamente para tal mudança de percepções.
“Com o patrocínio e apoio do Irã, o Hisbolá, o Hamas, a Jihad Islâmica Palestina e outros grupos criaram há alguns anos a Doutrina das Frentes Unidas”, lembrou Mohanad Hage Ali, pesquisador chefe do instituto de pesquisa Malcolm H. Kerr Carnegie Middle East, com sede em Beirute.
Segundo o pesquisador, a intenção da frente era criar uma doutrina de dissuasão contra Israe:. “O pressuposto é de que sempre que uma parte está sob ameaça existencial, as outras se juntem”, explica Hage Ali.
A lista de terroristas da UE, vale lembrar, inclui a Jihad Islâmica, a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e o braço militar do Hisbolá, entre outros.
Brown destaca que esse cenário de escalada, por enquanto, permanece especulativo: “As ações do Hamas foram muito ousadas e surpreendentemente bem-sucedidas no sentido tático, mas até agora a maior parte das repercussões fora de Gaza ocorreu num nível emocional ou simbólico”.
“Os combates ainda não se propagaram, a explicação mais provável é que o Hamas e o Hisbolá se veem como aliados, mas cada um faz os seus próprios cálculos.”
Fonte: dw.com
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