A superexploração agropastoril ao longo das margens goiana e mato-grossense do rio Araguaia e de seus principais afluentes está matando um dos maiores e mais belos rios do país
O rio Araguaia está morrendo. Literalmente. É uma morte asfixiante. O rio está sendo soterrado e sendo drenado. É uma morte agoniante que acontece bem diante dos olhos de todos. Inclusive, daqueles que deveriam estar fazendo algo para impedir esta verdadeira crônica de uma morte anunciada.
Em Barra do Garças (510 km a leste de Cuiabá), a degradação do rio Araguaia se revela na mudança radical da paisagem. Em 2022, a praia que se forma todos os anos em frente à cidade, no vizinho município de Aragarças (GO), se revelou como uma estreita faixa de areia 50% menor do que o normal, apesar da lâmina d’água do Araguaia ter secado tanto que expôs aos olhos incrédulos as bases dos pilares centrais que sustentam a ponte que une Goiás e Mato Grosso. Um fenômeno que nunca havia sido registrado.
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Quem conhece o fluxo do rio como os moradores pioneiros de Aragarças e Barra do Garças, afirma de forma categórica que este ano a faixa de areia da praia Quarto Crescente será ainda menor que o ano passado e que o rio irá secar ainda mais do ocorreu nos últimos três anos, quando a região viveu uma das mais intensas secas da sua história.
“Os peixes graúdo do rio Araguaia acabaram tudo por aqui. Só tem uns mandi, lobó, cascudo, um ou outro barbadinho e bico de pato. Acabaram os cardumes das matrinchã, pacu, caranha, tubarana, pintados, jaús, pirararas, fiote piraíba, sardinha, piaus cabeça gorda, os bagres camisa de meia. Os peixes nobres, de valor, não se pesca mais nesses trechos daqui perto da cidade. Lá pro rio abaixo ainda tem, mas tão cada vez mais escassos e pequenos porque os rios, córregos e lagoas que desaguam no Araguaia estão tudo seco. Uma tristeza ver isso”, testemunha o pescador José Elisamar da Silva Filho, o “Zélias”.
Nascido na velha Baliza, povoado localizado acerca de 60 quilômetros de Barra do Garças subindo o rio Araguaia, o pescador conhece o Araguaia desde criança e testemunhou seu rápido definhamento a partir dos anos 1980. “O Araguaia é um rio doente prestes a morrer de vez. Só não vê quem não quer mesmo. Nos últimos três anos então, foi muito feio o que aconteceu com o rio nesse trecho que corta Aragarças, Pontal e Barra do Garças. A gente começou a ver os bancos de areia no leito do rio já no mês de maio,mal teve a cheia de São José, que durou no máximo duas semanas. Esse ano, estamos começando o mês de junho e a praia é isso aí, só esse trechinho de barro e areia suja. A gente sabe que o rio tá morrendo olhando como o canal muda de lugar todo ano.
Antigamente, isso não acontecia. Mesmo na seca, o rio tinha volume, o canal era fundo, tinha peixe, cardumes, muito boto. Agora, olha isso, o canal do rio tá bem alí, não dá nem 10 metros do barranco, se medir, não passa de dois metros de fundura”, afirma o senhor “Zélias” com a experiência dos seus mais de 60 anos convivência com o rio Araguaia.
O advogado e ex-prefeito de Aragarças Hélio Fernando Gomes diz que sente profunda “angústia, tristeza e preocupação” diante da situação do rio Araguaia a cada nova temporada de seca. Fernandes lembra que em sua infância e juventude, a exuberância do Araguaia era fonte de lendas e canções.
“As belezas do nosso rio encantavam e faziam dele cenário e personagens de novelas, de filmes, de livros. Hoje, o rio que vemos é como uma sombra do que foi até a década de 1980 quando fui prefeito do município e promovemos os primeiros festivais de praia que fizeram a fama da região rivalizar com Aruanã, até então, única referência pa ra quem queria usufruir das belezas do Araguaia”, recorda com melancolia.
Para Hélio Fernando, no entanto, ainda há esperança de que o velho Araguaia possa ser resgatado e recuperado. “Isso aqui está muito diferente do que foi há 20, 30 anos. É triste o que está acontecendo com o Araguaia, ainda mais para nós, que somos filhos dessa terra e crescemos aqui, nas suas margens, que conhecemos o rio quando ele era largo, profundo, rico em todo tipo de peixes e tinha as praias de areia mais branca, limpa e fina do Brasil.
Agora eu sou otimista, eu acredito que isso ainda pode ser resgatado, que o rio pode ser recuperado. Basta que se interrompa de vez os desmatamentos das matas ciliares em toda a sua bacia, que se proiba a garimpagem e mineração, que parem de drenar de forma desordenada os mananciais para irrigar lavouras, que se recupere e replante as várzeas, veredas e se proteja de verdade as nascentes. Feito isso, a natureza se encarrega do resto e com o tempo, o rio irá retornar ao seu estado natural”, argumenta, esperançoso, o advogado.
Linha natural de fronteira entre Mato Grosso e Goiás, o rio Araguaia e seus principais afluentes cruzam uma das regiões cujas terras, atualmente, são das mais valorizadas e cobiçadas pelo agrnegócio nos dois estados. E é exatamente a superexploração agropastoril na bacia do rio a principal causa de sua intensa e rápida degradação.
Também a crescente demanda por água para irrigação, o desmatamento indiscriminado e muitas vezes ilegal do cerrado e suas veredas e o uso desregrado dos mananciais afluentes, agravado pelas mudanças climáticas que vem alterando os ciclos de chuva e seca na região, completam a lista das causas que estão levan do à morte o Grande Rio, o Bèrakuhuk , na língua do povo Karajá.
A nascente do rio fica na Serra do Caiapó, bem próximo ao Parque Nacional das Emas, no município de Mineiros, em Goiás. Com uma extensão total de 2.114 quilômetros da nascente até a foz. A degradação do rio Araguaia em seu estágio mais crítico, no entanto, está localizada exatamente no trecho em que ele corta os estados de Mato Grosso e Goiás, entre Alto Araguaia/MT e Mineiros-Santa Rita do Araguaia (GO) e foz do rio Javaés, no extremo norte da Ilha do Bananal, já no estado do Tocantins. Toda esta região, nas duas margens do rio, as atividades agropecuárias se desenvolvem de forma intensiva, quase sempre atropelando os regramentos do código ambiental e ignorando completamente o bom senso no uso da água disponível.
Pelo lado de Mato Grosso, o Araguaia tem como seus principais afluentes os rio Garças, rio Pindaiba, rio Cristalino, rio Barreirão, rio das Mortes, rio Tapirapé e rio Gameleira. Pela margem de Goiás, os principais afluentes do Araguaia são o rio dos Peixes, rio Piranhas, rio Claro, Rio Vermelho, rio Caiapó, rio Pilões, rio Perdidos, Crixá-Açú, Crixá-Mirim, rio Javaés, rio Formoso, rio Paraiso do Tocantins, rio Lajeado. Todos estes rios sofreram as consequeências da superexploração das terras de suas margens. Todos sofrem com o assoreamento de suas calhas, todos tiveram seus pequenos tributários igualmente afetados pelos desmatamentos das matas ciliares, o aterramento e retirada da cobertura vegetal de várzeas, veredas e nascentes. Vários dos pequenos córregos e veios d’água desapareceram nas três décadas.
Para entender porque o rio Araguaia entrou em agonia basta olhar para um mapa da bacia do Araguaia a partir de imagens de satélite. O avanço das propriedades rurais, especialmente as fazendas dedicadas à produção de grãos nos territórios goiano e mato-grossense tem sido devastador. As matas ciliares foram praticamente erradicadas na maioria das propriedades. As veredas foram ocupadas ou reduzidas em suas áreas de coleta e vazante. As várzeas foram transformadas em pasto ou foram aradas após as nascentes serem aterradas pelas erosões.
As grandes lavouras irrigadas drenam as águas dos afluentes e até mesmo diretamente do rio Araguaia. No chamado Médio Araguaia goiano, que compreende os municípios de Piranhas até Jussara, passando por Bom Jardim, Aragarças, Montes Claros de Goiás, Diorama, entre outros, o uso abusivo dos fazendeiros na exploração das águas que abastecem o Araguaia chegou ao cúmulo de proprietários escavarem logos canais de desvio de água do próprio Araguaia para suas propriedades, como flagrou uma operação de combate à crimes ambientais na região em 2016.
Um grito de socorro permanente
O ambientalista Ciro Gomes de Freitas, que integra a ONG Sociedade Guardiões da Terra e o coletivo “Patrulha Ambiental” do Araguaia, vem denunciando há décadas a ação predatória de fazendeiros, garimpeiros e outros empresários sobre o ecosistema do Vale do Araguaia. Freitas critica especialmente as derrubadas das matas ciliares e a destruição das veredas para o plantio de monoculturas como a soja e a criação de gado.
“A derrubada das matas ciliares, dos capões de campo nativo e das vereadas onde se concentram a maioria das nascentes dos rios, riachos e pequenos córregos que abastecem o Araguaia é como uma condenação de morte para o rio com execução de curto prazo. Esse processo leva ao assoreamento, o aterramento das calhas dos afluentes e do próprio Araguaia. Sem vegetação nas margens, os barrancos desmoronam e a terra vai sendo depositada no leito dos córregos, dos rios menores e do grande manancial que é o Araguaia e este se torna cada vez menos volumoso, mais largo e mais raso, afetando toda a vida aquática, causando extinção de inúmeras espécies, enfim, vai matando o rio por sufocamento. Isso vem acontecendo com o Araguaia desde as décadas de 1970 e 1980. Mas, o processo foi acelerado e muito a partir dos anos 2000, especialmente”, denúncia o veterano ecoambientalista que mora em Barra do Garças e luta pela conservação da natureza da região há mais 50 anos.
Pouco, lento e ineficaz
Programa “Juntos pelo Araguaia”, lançado em 2019 figura como uma das poucas e mais ambiciosas iniciativas para recuperar áreas degradadas na bacia do rio Araguaia. O anuncio do programa foi feito com pompa e circunstância pelo então presidente Jair Bolsonaro e pelos governadores Mauro Mendes, de Mato Grosso, e Ronaldo Caiado, de Goiás. O compromisso anunciado na época era recuperar 10 mil hectares de áreas degradadas da bacia do alto e médio Araguaia nos dois estados. Passados quatro anos, o “Juntos pelo Araguaia” executou irrisórios 7% do total e apenas no lado goiano da bacia.
O programa, que deveria ter seus custos divididos entre o Governo do Estado de Goiás e pelas empresas Anglo American, pela farmaceútica Hypera Farma e outros grupos empresariais privados, vem patinando pois o poder público não tem investido a sua contrapartida no projeto.
Pelo lado mato-grossense a situação é ainda pior. O governo de Mato Grosso, apesar de parceiro no projeto “Juntos pelo Araguaia” e ter se comprometido a recuperar outros 5 mil hectares nas bacias dos rios mato-grossenses tributários do Araguaia, não fez ainda nada de prático. Não se tem notícias de que a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) tenha sequer elaborado algum projeto específico voltado para a conservação, recuperação e proteção das bacias dos rios que desaguam no Araguaia.
Garimpos e mineração seguem sem controle nos rios das Garças, Barreirão e Cristalino, por exemplo. As grandes fazendas de soja continuam avançando sobre áreas de interesse ambiental nas margens dos rios das Mortes, Rio das Garças, Tapirapé e outros tantos menores que alimentam o moribundo Araguaia.
Fonte: copopular.com.br