Sob protestos de representantes de povos indígenas no Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (30/5) um projeto de lei que estabelece o “marco temporal” — a tese de que a demarcação de terras indígenas só pode ocorrer em comunidades que já ocupavam esses locais quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988.
A pauta, uma das mais disputadas nos últimos anos no que diz respeito aos indígenas no país, segue para votação no Senado.
Na Câmara, houve 283 votos favoráveis ao projeto e 155 contrários.
Por outro lado, a questão do marco temporal já estava pautada para julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) previsto para 7 de junho.
A análise pelo plenário do Supremo foi iniciada em 2021 e logo interrompida por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Até agora, votaram os ministros Nunes Marques, que foi favorável ao marco temporal; e Edson Fachin, contrário (leia mais abaixo).
No STF, a pauta tem repercussão geral, o que significa que a decisão para este caso específico — relativo à disputa por terras em Santa Catarina — valeria para outros parecidos.
No Congresso, o estabelecimento do marco temporal é uma antiga demanda da bancada ruralista e do Centrão, bloco informal de partidos sem linha ideológica clara, mas que compartilha valores conservadores.
Enquanto isso, na sociedade civil, o projeto é duramente criticado por ambientalistas e indígenas.
Em 24 de maio, a Câmara aprovou requerimento de urgência para analisar o projeto de lei.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou sua base para votar o requerimento, gerando críticas de apoiadores e até da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara — que foi à Câmara nesta terça-feira pedir aos deputados que a pauta não fosse retirada da pauta do dia.
Após a derrota, Guajajara escreveu no Twitter esperar que o texto não avance no Senado: “Aprovado o PL490 pela Câmara: um ataque grave aos povos indígenas e ao meio ambiente. Seguimos lutando pela vida. Ainda no Senado, dialogaremos para evitar a negociação de nossas vidas em troca de lucro e destruição. Não desistiremos!”
Também na rede social, a presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, afirmou torcer para que “o Senado pare esse absurdo”.
Representantes de povos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil, foram à praça dos Três Poderes e ao Salão Verde da Câmara protestar contra o estabelecimento do marco temporal nesta terça-feira.
Antes da votação, o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), defendeu que o texto trará mais segurança jurídica para proprietários rurais e pediu que o STF deixe de julgar o tema, uma vez que ele já está sendo deliberado no Legislativo.
A deputada Silvia Waiãpi (PL-AP), indígena, afirmou que o projeto de lei não ataca os direitos dos povos originários.
“Estamos discutindo o futuro da nação. Querem criar guerras de narrativas para subjugar um povo para viver eternamente em 1500”, disse.
Além da questão do marco temporal, o texto aprovado na Câmara prevê a permissão para cultivo de transgênicos por indígenas e a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas.
Uma pauta antiga
O projeto de lei votado nesta terça-feira na Câmara é originalmente de 2007. Inicialmente, ele tinha o objetivo de transferir do Executivo para o Legislativo o poder de demarcar terras indígenas — mas, desde então, ele recebeu várias modificações, por meio de mais de 10 apensados e de um texto substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia, relator da matéria.
Desde que o requerimento de urgência foi aprovado na semana passada, o texto avançou rapidamente. Somente nesta terça-feira, antes de chegar ao plenário, ele passou pelas comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC); de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR); de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR); e da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais (CPOVOS).
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a votação no plenário ocorreu rapidamente por conta da previsão do julgamento no STF.
“Tentamos um acordo para que a gente não chegasse a este momento, mas o fato é que o Supremo vai julgar no dia 7 e este Congresso precisa demonstrar que está tratando a matéria com responsabilidade em cima dos marcos temporais que foram acertados na Raposa Serra do Sol. Qualquer coisa diferente daquilo vai causar insegurança jurídica”, disse Lira, defendendo o projeto de lei e a possibilidade de que os indígenas cultivem bens agrícolas em suas terras.
“Nós não temos nada contra povos originários, nem o Congresso tem e não pode ser acusado disso. Agora, nós estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% da área do país”, completou, segundo informações da Agência Câmara de Notícias.
Lira se referiu à Terra Indígena Raposa Serra do Sol porque foi no julgamento de um caso referente a ela, em 2009, que o termo foi impulsionado. Naquela ocasião, o tribunal estabeleceu 1988 (ano da promulgação da Constituição) como marco temporal para as demarcações.
Mas o caso a ser julgado pelo STF, segundo a previsão de julgamento para o próximo dia 7, refere-se a uma parte da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, habitada pelos povos xokleng, kaingang e os guarani.
A disputa judicial envolve, de um lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai); e de outro, órgãos do governo estadual de Santa Catarina, que reinvindicam áreas que a Funai havia declarado como tradicional ocupação indígena. O Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) havia determinado a reintegração de posse aos órgãos catarinenses, ao que a Funai recorreu.
Vários grupos indígenas, por outro lado, são contrários à aplicação do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios originais antes de 1988. É esse o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território que hoje tentam retomar.
Já o governo de Santa Catarina afirma que essa área era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19.
O relator do caso de Santa Catarina, ministro Edson Fachin, foi o primeiro a votar. Entre outros argumentos, ele afirmou que os direitos territoriais dos indígenas são protegidos desde pelo menos 1934 por leis e por Cartas Constitucionais, e que a Constituição de 1988 apenas trouxe novas garantias. Para o relator, os direitos territoriais indígenas são direitos fundamentais.
Já o ministro Nunes Marques votou, em 2021, a favor do marco temporal. Ele reconheceu que a Constituição de 1988 ratifica os direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas defendeu que essa proteção constitucional está condicionada ao marco temporal — segundo ele, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial.
Em 2018, num outro julgamento sobre a demarcação de territórios quilombolas, o STF rejeitou o princípio do marco temporal.
Fonte: bbc.com