Indígena do povo Xakriabá, de Minas Gerais, a deputada afirma que, até as últimas semanas, os povos indígenas vinham sendo tratados como prioridade pelo governo federal.
“Não deixamos de ser prioridade. Agora, a diferença é que estamos sendo prioridade como moeda de troca, tendo nossos direitos rifados e leiloados”, ela afirma.
Na última quarta-feira (24/05), uma comissão mista do Congresso aprovou um relatório do deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL) que altera a reorganização ministerial definida em janeiro pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Entre outras mudanças, o relatório de Bulhões retira do Ministério dos Povos Indígenas a atribuição de demarcar terras indígenas, devolvendo essa prerrogativa ao Ministério da Justiça
A demarcação de terras indígenas é um tema sensível para a bancada ruralista, que representa fazendeiros e é um dos grupos mais fortes do Congresso.
Os ruralistas não querem que o Ministério dos Povos Indígenas fique encarregado das demarcações e pressionam pela aprovação de propostas legislativas que freariam os processos.
O relatório de Bulhões também pode enfraquecer o Ministério do Meio Ambiente, ao deslocar para outras pastas a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional das Águas (ANA).
O texto de Bulhões precisa ser aprovado nos plenários da Câmara e do Senado até 1° de junho para vigorar.
Caso contrário, seguirá valendo a reorganização ministerial definida por Lula, e os ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente manterão suas atribuições.
‘Faltou empenho’
Para a deputada Célia Xakriabá, que apoiou a eleição de Lula e é um dos principais nomes do movimento indígena brasileiro, o governo poderia ter se esforçado mais para evitar a aprovação do relatório de Bulhões.
“Faltou empenho, faltou prioridade (do governo), porque nesse momento tinha toda a condição de fazer a negociação (do relatório) a partir do Poder Executivo”, afirma.
Auxiliares importantes de Lula participaram da negociação do relatório. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Rui Costa (Casa Civil) jantaram com o deputado Isnaldo Bulhões na última segunda-feira (22/05) para tratar do texto.
Xakriabá diz que também esteve com Bulhões antes da aprovação do relatório. Ela afirma ter defendido no encontro que a retirada da atribuição de demarcar terras equivaleria a “arrancar o coração do ministério dos Povos Indígenas”.
Segundo ela, deputados que defendem a mudança argumentam que haveria um “conflito de interesses” caso o Ministério dos Povos Indígenas ficasse encarregado das demarcações.
O Ministério dos Povos Indígenas é chefiado pela indígena Sônia Guajajara (PSOL) e tem vários indígenas em postos-chave.
Para Xakriabá, porém, ninguém questiona que agricultores comandem o Ministério da Agricultura.
Ela diz que o argumento pela transferência das demarcações “parece uma proposta da época do Estatuto do Índio (1973), que falava que nós, povos indígenas, tínhamos de ser tutelados”.
Xakriabá diz ainda que, antes da posse de Lula, lideranças indígenas que participaram do Gabinete de Transição do novo governo defenderam que criar o Ministério dos Povos Indígenas “só teria sentido se o órgão assumisse a atribuição da demarcação”.
Promessas eleitorais
Segundo a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), há cerca de 200 processos de demarcação de terras indígenas em curso. Essas áreas equivalem a um décimo das terras já demarcadas e abarcam cerca de 1,2% do território nacional.
Muitos desses processos estão travados na Justiça e são contestados por fazendeiros, que dizem ser os donos legítimos das terras pleiteadas por indígenas.
Após pressão dos ruralistas, as demarcações foram desaceleradas nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) e suspensas no governo de Jair Bolsonaro.
Bastante popular entre fazendeiros, o ex-presidente costuma dizer que já há terras indígenas demais no Brasil e que as demarcações prejudicam o desenvolvimento do país.
Já Lula se elegeu no ano passado prometendo priorizar pautas do movimento indígena e retomar as demarcações.
Em 28 de abril, ele assinou decretos de homologação (última etapa do processo de demarcação) de seis terras indígenas e disse que concluiria todos os processos pendentes em seu governo.
Para Célia Xakriabá, o governo “teve muito compromisso, muito comprometimento” com as pautas indígenas até o anúncio das demarcações, em abril.
Ela também elogia o empenho de Lula em expulsar os garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, e em atenuar a crise humanitária vivida pelos indígenas daquele território.
“Existe um compromisso verdadeiro do presidente Lula, mas, neste momento, também existe uma correlação de forças contrária e é preciso o governo incidir”, afirma, para “que ele retome ter os povos indígenas como prioridade”.
Xakriabá disse ter a esperança de que articuladores do governo consigam reverter as mudanças no relatório de Bulhões antes da votação do texto em plenário, na próxima semana.
Nesta sexta (26/05), o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou a jornalistas que o governo trabalhará com o Congresso para tentar desfazer as alterações de Bulhões.
“Vamos trabalhar no Congresso para que a essência das políticas publicas permaneça como na origem”, disse o ministro. Segundo ele, Lula cobrou os ministros que negociam com o Congresso a “reafirmar a prerrogativa de quem ganhou a eleição e de quem ganhou a implementação de um projeto político”
‘Como se tirassem Raoni da foto’
Segundo Célia Xakriabá, o enfraquecimento do Ministério dos Povos Indígenas afastaria o governo de uma de suas principais promessas de campanha: lutar contra as mudanças climáticas.
Ela cita estudos que apontaram a demarcação de terras indígenas como um dos instrumentos mais eficientes para evitar o desmatamento.
Para ela, se o governo recuasse nesse ponto, “seria como se arrancassem Raoni da fotografia do dia da posse”, diz, referindo-se ao protagonismo que o líder indígena Raoni Metuktire teve na cerimônia em que Lula reassumiu a Presidência, em janeiro.
Xakriabá diz ainda que, embora o movimento indígena tenha apoiado a eleição de Lula, o grupo não aceitará retrocessos nos ritos de demarcação.
“Negociar a pauta territorial é negociar as nossas vidas, e nossas vidas não estão sob negociação.”
“Seja quem for (o governo), de direita ou esquerda, nós faremos contraposição, porque não permitiremos que rifem esse direito territorial”, diz.
Fonte: bbc.com