Diante da visita de Estado de Luiz Inácio Lula da Silva a Espanha e Portugal, onde desembarcou nesta sexta-feira (21/04), ecoa a questão: depois de ter ido aos Estados Unidos e China, por que o presidente brasileiro escolheu a Península Ibérica como destino de sua primeira viagem oficial à Europa neste terceiro mandato? Por que Lisboa e, a seguir, Madri, em vez de Berlim e Paris, capitais das duas maiores potências do continente, ou Bruxelas, sede da União Europeia (UE)?
Segundo o Planalto, a viagem a Portugal e Espanha “faz parte do relançamento das relações diplomáticas do Brasil com seus principais parceiros”, após o isolamento internacional do Brasil sob Jair Bolsonaro.
Entre outros compromissos em Portugal, país com o qual o Brasil tem laços históricos, Lula participará da Cimeira Brasil-Portugal, encontro que não ocorria desde 2016 e no qual devem ser assinados ao menos 13 acordos bilaterais em diversas áreas. O presidente permanecerá em solo português até a próxima terça-feira, quando será homenageado numa sessão solene na Assembleia da República Portuguesa durante as comemorações da Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura salazarista.
No mesmo dia, segue para a Espanha, que além de ser vizinha de Portugal, assumirá a presidência da UE no segundo semestre.
Declarações polêmicas sobre a Ucrânia
Há quem especule se o governo brasileiro optou por não visitar Paris, Berlim ou Bruxelas por conta das recentes declarações de Lula sobre a guerra na Ucrânia, de que Estados Unidos e Europa estariam prolongando o conflito, rebatidas tanto pela Casa Branca quanto pela Comissão Europeia.
Para Demétrio Magnoli, sociólogo e conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos Internacionais (Cebri), no entanto, a escolha tem a ver com a estratégia do novo governo de se concentrar no chamado Sul Global.
“Lula não acha que a Europa é importante. A política externa é definida pelo governo, como uma política externa baseada nas relações com o que eles definem como o Sul Global, cujo eixo seria o Brics, que eles entendem como um polo de poder alternativo e contraditório aos Estados Unidos. E, na visão deles, a Europa faz parte do polo de poder americano”, analisa.
Magnoli considera que as declarações de Lula sobre a Ucrânia não resultaram de “frases impensadas ou erros de comunicação”, mas foram coerentes com o que seria de fato a política de governo, apesar do recente voto brasileiro a favor de uma resolução da ONU exigindo a retirada russa da Ucrânia.
“Eu me pergunto até que ponto essa é uma política de não alinhamento”, questiona o diretor do think tank Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes), Pedro Motta Veiga, lembrando a tradição da neutralidade da diplomacia brasileira ao longo do tempo.
As declarações de Lula acusando os EUA e a Europa de prolongarem o conflito no Leste Europeu também repercutiram em Portugal. A viagem do presidente causou controvérsia no país antes de sua chegada. No dia anterior à sua viagem, Lula foi citado 61 vezes na edição dos dois principais jornais portugueses, Público e Diário de Notícias.
As falas do brasileiro foram interpretadas, em parte, como crítica extensiva a Portugal, que integra a UE e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Ao mesmo tempo, a imprensa portuguesa também destacou a importância da viagem de Lula ao país.
Reconstrução de relações
“Para o Brasil, Portugal e Espanha não são países secundários. Temos fortes ligações culturais, que se refletem, evidentemente, na medida do possível, em laços econômicos importantes. Mas, evidentemente, elas não têm a dimensão política e econômica das relações com a França e Alemanha, que são relações que podem apresentar resultados concretos e muito importantes”, comenta o ex-ministro e ex-embaixador Sergio Amaral.
Para efeito de comparação, a corrente de comércio do Brasil com Portugal e Espanha somou 19 bilhões de dólares em 2022, praticamente metade do volume de 28 bilhões de dólares em trocas comerciais com França e Alemanha.
Na perspectiva da cientista política e professora da Escola Superior de Guerra (ESG) Erica Resende, três objetivos guiam a visita a Portugal. O primeiro seria o mesmo apontado pelo Planalto, de reconstruir as relações com o país, prejudicadas durante o governo Bolsonaro, que chegou a desmarcar uma reunião com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, sem antecedência protocolar.
O segundo objetivo da viagem seria contribuir para a construção, pretendida por Lula, de um consenso internacional para a paz na Ucrânia, junto a outros atores internacionais.
Além disso, o Brasil estaria visando fortalecer o relacionamento com a União Europeia via Portugal, que foi importante para a parceria estratégica Brasil-União Europeia selada em 2007 e que funcionou regularmente até meados da década passada.
Desde então, a parceria estratégica “rigorosamente perde expressão”, explica a professora de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Miriam Saraiva. A parceria compreendia cúpulas anuais e diálogos setoriais, que muitas vezes envolviam a sociedade civil.
Fora o campo econômico, dois temas são fundamentais para a União Europeia e, por consequência, para Portugal e Espanha: regime democrático e meio ambiente. “Esses temas têm um espaço de articulação com o governo Lula que é interessante”, avalia Saraiva.
Carmen Fonseca, professora de Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, aponta haver um interesse de Portugal em se reaproximar e apoiar o Brasil.
“Essa vontade de aproximação deriva, por um lado, e internamente, do peso da comunidade migrante em Portugal. A agenda migratória será central no diálogo entre os dois países, além das questões econômicas e comerciais. E por outro lado, como fator externo, Portugal mostra-se disposto a ‘reconstruir’ a imagem internacional do Brasil junto da UE e seus Estados-membros”, afirma a acadêmica.
Espanha como mediadora do acordo UE-Mercosul
Fonseca destaca, que, em paralelo, o diálogo com a Espanha será fundamental para as pretensões diplomáticas brasileiras, já que o país ibérico assumirá em julho, por seis meses, a presidência rotativa da União Europeia.
“Porém, o presidente Lula tem mostrado que a sua política externa está em construção, e por isso, ainda temos de perceber se os interesses e os valores do Brasil estão em sintonia com os interesses e valores de Portugal, e da União Europeia”, pondera.
A especialista acredita que o acordo comercial Mercosul-União Europeia faz parte dos temas em que a Espanha poderia funcionar como “mediadora” junto aos parceiros no bloco europeu.
O pacto está congelado desde a sua assinatura, em 2019, depois de 20 anos de negociação. Uma das principais objeções apontadas pelo lado europeu foi a falta de compromisso do governo brasileiro com a proteção ambiental, após o desmatamento aumentar sob Bolsonaro. Atualmente, uma carta apresentada pela União Europeia, em março, está sendo analisada pelo Mercosul. O documento reafirma a preocupação com questões ambientais e traz novas exigências.
“Inicialmente, a viagem planejada era apenas para Portugal, mas o rei da Espanha convidou Lula para estender a viagem à Europa e ir também a Madri por um dia. Provavelmente os espanhóis querem trocar algumas opiniões com o Brasil antes da Cúpula UE-Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] em julho, para que algo possa ser alcançado na reunião de alto nível”, avalia Bruno Theodoro Luciano, pós-doutorando na Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica.
Na prática, justamente Portugal e Espanha são os dois países do bloco mais favoráveis ao acordo com o Mercosul, aponta Luciano. “O acordo ainda é algo sobre a mesa, apesar dos desafios de ratificação por alguns Estados-membros – como a França – e pelo Parlamento Europeu, devido às preocupações ambientais remanescentes e ao protecionismo agrícola europeu”, conclui.
Fonte: dw.com