Em um curto espaço de tempo em que dois ataques a unidades de ensino horrorizaram o país, inúmeras postagens cultuando os massacres e seus autores foram identificadas por usuários das redes sociais e reportadas pela imprensa.
A facilidade de encontrar esse conteúdo extremista em publicações abertas, o seu grande volume nas maiores plataformas e o longo tempo em que muitas delas ficam no ar, sem serem bloqueadas, levou muitos usuários a questionarem se alguém está investigando todo esse conteúdo. O que as autoridades estão fazendo para combater esse incentivo a ataques e essa radicalização?
Em um vídeo postado no Twitter em português na quarta-feira (05/04) com uma montagem glorificando cenas de ataques a escolas ao som de rock – que parece retratar os agressores como personagens de um filme de ação – um usuário marcou o perfil da Polícia Federal, outra pessoa avisou a página do ministro da Justiça, Flávio Dino, e outro chegou a marcar até o FBI, a agência de investigação dos Estados Unidos, que não atua no Brasil.
Em outro post parecido, no qual uma pessoa diz que “espera que coisas assim aconteçam com mais frequência”, uma usuária marcou um delegado de São Paulo, outra marca o perfil do BOPE, a tropa de choque da PM do Rio de Janeiro.
As respostas às postagens extremistas mostram que há uma certa confusão sobre quem deveria investigar esse conteúdo e sobre o que está sendo feito pelas forças de segurança. Em que momento a polícia deveria intervir? O que poderia ser feito?
‘Omissão legislativa’
A Constituição brasileira determina a quem cabe investigar quais crimes. A Polícia Civil investiga os ataques realizados por agressores nas escolas, mas sua atuação é determinada pelo território onde um crime acontece, explica a criminalista Maira Zapater, professora de direito penal e direito processual penal da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Ou seja, um crime cometido em São Paulo é investigado por departamentos policiais de São Paulo.
A incitação ao crime que acontece na internet, no entanto, não tem um território claro – a localidade do usuário pode ser descoberta por uma investigação já em andamento, mas que Estado vai iniciar a investigação? O problema é que essa conduta nas redes sociais também não é automaticamente responsabilidade da Polícia Federal, segundo os especialistas.
A PF tem um departamento criado em janeiro de 2023 para coordenar as suas unidades que combatem crimes de ódio (como o crime de racismo), mas sua atuação é restrita: investiga somente os crimes que serão julgados pela Justiça Federal – por exemplo, quando há prejuízo a algum bem, serviço ou interesse da União e crimes previstos em tratados internacionais em que há aspectos transnacionais, explica a criminalista Maira Zapater.
A Polícia Federal afirma que o simples fato de um usuário propagar discursos de ódio na internet, não traz, por si só, a atribuição da Polícia Federal. “É necessário demonstrar a internacionalidade da conduta ou de seus resultados, assim como a intenção de atingir coletividade (e não indivíduos específicos)”, explica a PF à BBC.
A PF também investiga crimes que poderiam se encaixar na Lei de Terrorismo, mas a maioria das ameaças de ataques às escolas, diz a instituição, não ficam sob sua alçada.
“Seja porque tratam-se de atentados contra a vida de particulares sem dano ou interesse direto da União, seja porque o ato violento é cometido por menor de idade, o que cabe ao respectivo Juízo especial, com consequente atribuição da Polícia Civil (para investigar)”, explica a instituição.
A Polícia Federal afirma que, embora não tenha uma unidade específica para combater ameaças de ataques à escolas na internet, porque em geral isso foge da sua atribuição, ela faz o encaminhamento necessário a cada caso quando investigações, monitoramentos ou mesmo queixas de pessoas sobre ameaças chegam à instituição.
A dificuldade é que, além de ter uma atuação com limitação territorial, a Polícia Civil precisa de indícios de que uma conduta na internet se encaixa em uma descrição de um crime para investigá-la – e muitas vezes ela não se encaixa em nenhum, explica a professora Maíra Zapater.
“Por exemplo, um jovem que diz que ‘ter arma é muito bom porque você pode matar quem você quiser’ está falando algo que pode se encaixar em discurso de ódio, mas é uma conduta que por si só não configura um crime”, explica. “O que não significa que não seja reprovável e que não haja outras formas, não penais, de se combater.”
Da mesma forma, alguém que diz que um atirador “estava certo” ou que é “alguém com coragem” não é uma ameaça de fato e pode não se encaixar no delito de incitação ao crime, segundo os especialistas.
Ou seja, a celebração de agressores e a investigação do incentivo aos ataques em escolas nas plataformas mais abertas de redes sociais de certa forma cai em uma área cinzenta, um vazio legislativo, sobre quem tem a competência para investigar.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já afirmou que existe uma “omissão legislativa” em alguns temas ligados ao combate de crimes motivados por discursos de ódio e intolerância e cobrou que o Congresso Nacional faça leis mais específicas.
Além disso, a evolução das redes sociais na internet é fenômeno relativamente recente que a legislação muitas vezes falha em acompanhar no mesmo ritmo, explica a advogada Ana Paula Siqueira, que tem mais de 10 anos de atuação no combate ao cyberbullying. E isso não apenas no campo penal, mas também quanto ao direito civil – a Lei de Proteção de Dados, que regula o tratamento de dados pessoais, por exemplo, foi criada em 2018.
O que as autoridades podem fazer?
Todas essas dificuldades, no entanto, não significam que não haja nada que as autoridades policiais possam fazer enquanto não houver novas leis sobre o assunto.
Se houver qualquer indício de localidade dos usuários radicalizados ou de lugares onde eles afirmam que vão agir, a Polícia Civil estadual daquele estado entra no caso.
“A Polícia Civil vai iniciar uma investigação se identificar uma ameaça na internet a uma escola da Bahia”, explica a Secretaria de Segurança Pública do estado.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que a Polícia Civil registrou 279 casos de ameaças e casos de exaltação de ataques a escolas na internet, envolvendo o estado, em apenas uma semana.
“O trabalho do setor de inteligência da Polícia Civil frustrou, entre os dias 11 e 12 de março, dezenas de possíveis atos violentos em escolas. Foram cumpridos sete mandados de busca e apreensão nos municípios de São José dos Campos, Caçapava e Tupã, sendo apreendidos três adolescentes com celulares, facas, máscaras, chips de telefonia, bandanas e cadernos de anotações”, diz o órgão.
A secretaria diz que os detalhes das operações para apuração de crimes virtuais “são preservados para garantir autonomia aos trabalhos policiais”, mas que monitora as ameaças e casos de exaltação de ataques a escolas na internet e especialmente em redes sociais. “(A Polícia Civil) age também em resposta a denúncias apresentadas por usuários das redes”, diz a pasta.
Nesta quinta (06/04), o governo federal anunciou a criação de uma força tarefa do Ministério da Justiça com as delegacias estaduais contra crimes cibernéticos para prevenir e reprimir ataques às escolas.
Também foi montado pelo Ministério da Justiça um grupo emergencial de monitoramento da deep web, uma parte da internet de mais difícil acesso e com maior anonimidade para os usuários – que não é ilegal, mas muitas vezes é usada para o planejamento de crimes.
Grande volume de conteúdo extremista
Investigação da própria polícia de São Paulo mostrou que o agressor que matou a professora em São Paulo participava de comunidades radicais na internet e chegou a dizer que cometeria crimes – algo que passou despercebido pelos radares das forças de segurança.
O procurador aposentado Ricardo Prado, professor de direito e presidente do Movimento do Ministério Democrático, explica que o volume de postagens extremistas é uma grande dificuldade para a investigação.
“Não é possível rastrear tudo, porque a quantidade desse tipo de conteúdo é gigantesca, inclusive nas plataformas mais conhecidas”, afirma ele, que explica que o Ministério Público tem uma série de grupos de trabalho sobre a questão.
Embora a atribuição de investigar crimes seja primariamente das polícias, o Ministério Público também tem competência para fazer investigação em diversos casos.
Prado diz que essa radicalização é “algo muito difícil de combater sem a colaboração das plataformas, que muitas vezes desrespeitam ordens judiciais (de entregar dados sobre usuários ou derrubar contas)”.
“Se a Justiça bloqueia essas plataformas (por terem desrespeitado as ordens judiciais) o público brasileiro reage, fica contra o judiciário”, afirma ele, que defende defende a aprovação de projetos de lei que visam uma maior regulação e responsabilização das plataformas de redes sociais, como a Lei Brasileira de Liberdade na Internet, Responsabilidade e Transparência Digital, que tramita no Congresso.
As principais plataformas afirmam que trabalham continuamente para derrubar conteúdos de violência e ódio e que têm canais para denúncias feitas por usuários. O Twitter, no entanto, não respondeu ao contato da reportagem. A plataforma mudou sua política de moderação após aquisição por Elon Musk e também parou de responder a questionamentos de jornalistas.
O Ministério da Justiça anunciou que uma reunião da nova força tarefa federal e interestadual com representantes das plataformas de redes sociais está marcada para segunda (10/04). O encontro deve alinhar um protocolo de atuação conjunta, diz a pasta.
Última linha de combate
Pesquisadoras e juristas alertam que, embora essencial, a atuação das forças policiais é a “última linha” de combate à radicalização – um problema que tem muitas causas que precisam ser combatidas em diversos setores da sociedade.
“Ter o artefato da segurança pública garantindo que haverá um cerceamento de conteúdos violentos e opressores e buscando responsabilização pelos danos é um caminho, mas não é o único”, diz Danila Di Pietro, pesquisadora da Unicamp e parte do grupo, liderado pela professora Telma Vinha, que mapeou ataques a escolas nas últimas décadas.
“Se a gente não trabalhar na promoção de uma convivência ética e democrática, com trabalho nas escolas, por exemplo, a gente só vai atuar depois do dano causado. Quando um adolescente propaga um conteúdo violento, o dano já está sendo causado – pode ser pior – mas o dano já é cometido com o discurso de ódio, já é uma violência”, afirma.
“Por isso que a gente precisa, na escola, articular um debate sobre radicalização, sobre politização, racismo, misoginia, sobre como a gente convive com a diferença, com aquilo que não gosto. Tudo isso precisa ser oferecido antes do discurso de ódio, antes do ato violento”, diz ela.
A criminalista Maíra Zapater, da Unifesp, afirma que a criminalização de mais condutas online que hoje não se encaixam em nenhum crime descrito na legislação pode não ser o caminho mais efetivo de combate. Mesmo quando um adolescente já foi introduzido à radicalização e acessa esse tipo de conteúdo, dependendo do caso concreto, existem formas de se combater que não necessariamente passam pela investigação policial e pelo direito penal.
As plataformas de redes sociais, por exemplo, podem por iniciativa própria fazer um rastreamento mais amplo e mais rápido desse conteúdo e dos perfis extremistas e derrubá-los, impedindo sua multiplicação, antes de uma ação da polícia ou de um mandado judicial.
Ricardo Prado, do MPD, também aponta para o caminho da cobrança, regulação e responsabilização das plataformas.
“Não estamos falando de cerceamento de liberdade de expressão, mas de exageros, radicalismos, de espaços onde se propaga o ódio e onde se ensinam a fazer bombas”, pontua Di Pietro.
O governo federal anunciou nesta semana a criação de um grupo de trabalho interministerial de combate e prevenção à violência nas escolas com membros das pastas da Educação, da Justiça, dos Direitos Humanos e da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Fonte: bbc.com