Agentes do mercado e políticos aguardam ansiosos o anúncio prometido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre o chamado “novo arcabouço fiscal”. A expectativa é de que ele seja anunciado até o final deste mês.
O nome complicado pode ser traduzido, de forma simples, como um conjunto de regras que vai nortear a forma como o governo federal vai administrar as contas públicas, historicamente, um dos calcanhares de Aquiles dos últimos governos.
O anúncio ainda em março antecipa em cinco meses o prazo que o governo tinha para apresentar a sua proposta de novo regime fiscal.
Em dezembro do ano passado, o Congresso Nacional aprovou a chamada emenda constitucional da transição que determinou que o governo tinha até agosto para levar uma nova proposta para o Parlamento.
Apesar de Haddad afirmar que o novo conjunto de regras é “consistente”, o tema é visto com preocupação por agentes do mercado e já é considerado como a primeira grande batalha que Lula deverá enfrentar no Congresso Nacional. Um desafio que pode servir de termômetro para aferir o tamanho de sua base parlamentar e a habilidade da sua equipe de articuladores políticos
À espera pelo anúncio das novas regras, a BBC News Brasil entrevistou três especialistas no assunto para responder quatro principais perguntas sobre o tema:
- O que é o novo arcabouço fiscal?
- Por que o mercado está ansioso?
- Como ele pode afetar a taxa de juros?
- Por que é a primeira grande batalha de Lula no Congresso?
O que é o arcabouço fiscal?
O economista Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da consultoria Ryo Asset, explica que o Brasil tem uma série de regras fiscais que determinam como o governo pode gastar os recursos públicos e como ele deve gerir a dívida pública de forma que o Estado brasileiro tenha condições de honrar seus compromissos.
Entre elas está a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada em 2000, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Outra regra é a que ficou conhecida como “Teto de Gastos”, aprovada em 2016, durante a gestão de Michel Temer (MDB), que determinava que as despesas só poderiam crescer de acordo com a variação da inflação.
Nos últimos, anos, porém, mecanismos como o teto de gastos viraram alvo de críticas. Por um lado, houve questionamentos por ela, supostamente, “engessar” os gastos públicos, limitando a quantidade de recursos injetados em uma determinada área.
De outro, a regra foi criticada por sua fragilidade, uma vez que, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), foram aprovadas propostas de emenda constitucional (PECs) que abriram brechas na norma, como a chamada PEC dos Precatórios, que flexibilizou o teto de gastos para acomodar gastos com o pagamento de precatórios devidos.
O novo arcabouço fiscal, portanto, seria uma revisão das regras que deverão ser seguidas pelo governo federal nos próximos anos.
“O novo arcabouço é uma forma de agregar várias mudanças no ordenamento fiscal brasileiro porque há regras que ou não estão mais sendo aplicadas, ou perderam importância ou que não estão de acordo com a visão do novo governo”, disse o economista.
Para a diretora-executiva da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, Vilma da Conceição Pinto, o novo arcabouço fiscal é um conjunto de normas sobre a governança das contas e da dívida pública.
“Quando falamos em um novo arcabouço, a gente fala de novos padrões de governança. Trata-se de tentar dar uma perspectiva sobre como o governo vai conduzir a sua política fiscal e equilibrar a qualidade do gasto público com a responsabilidade social”, explica.
O ministro Fernando Haddad não tem dado detalhes sobre em que consiste o novo regramento desenhado pela equipe econômica do governo.
Na terça-feira (14/03), porém, o jornal O Globo publicou uma reportagem informando que um dos pontos previstos no novo arcabouço é zerar o déficit público até 2024.
Neste ano, a estimativa da equipe econômica seria deixar o déficit em até R$ 100 bilhões.
O déficit público é a diferença entre o que o governo arrecada e o que ele gasta. Ainda de acordo com a reportagem, a proposta elaborada pela equipe de Haddad prevê modelos para que os gastos não superem as receitas e que as receitas sejam de pelo menos 19% do Produto Interno Bruto (PIB).
A estimativa é de que as regras propostas sejam apresentadas até o dia 21 deste mês, data da próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, quando o órgão deve anunciar ou não mudanças na taxa básica de juros, atualmente em 13,75% ao ano.
Por que o mercado está ansioso?
Essa preocupação teria tido início ainda durante a campanha eleitoral a partir de declarações do então candidato petista contra o teto de gastos e o sistema financeiro.
“Não preciso de teto de gastos, quando você faz uma lei de teto de gastos é porque é irresponsável, porque você não confia no seu taco e não confia no que vai fazer. Quem é que obrigou a fazer esse teto de gastos, foi a Faria Lima? Foi o sistema financeiro? Sem se importar que o povo é dono de uma parte?”, disse Lula em julho do ano passado.
Depois de eleito, Lula passou a defender uma expansão dos gastos públicos para, segundo ele, incluir a população pobre no orçamento do governo federal.
Lula também articulou a aprovação da emenda constitucional da transição que ampliou o déficit no orçamento de 2023 de R$ 63,7 bilhões para R$ 231,5 bilhões para comportar, em parte, a manutenção em R$ 600 do valor do benefício Auxílio Brasil, que havia sido promessa de campanha de Lula e Bolsonaro.
“O mercado está ansioso porque, ainda que seja só narrativa, o governo só tem falado em expansão do gasto e não em corte de despesas. Isso eleva a preocupação dos agentes do mercado sobre a trajetória e a sustentabilidade da dívida”, explicou o Gabriel Leal de Barros, da Ryo Asset.
Vilma Conceição, do IFI, alerta, também, para a trajetória da relação entre a dívida pública e o PIB, um dos parâmetros para aferir a sustentabilidade das contas públicas de um país.
Desde 2015, houve um aumento da dívida do país em relação ao PIB. Naquele ano, a dívida bruta do governo era o equivalente a 57,2% do PIB. Em 2020, no auge da epidemia de covid-19, esse percentual chegou a 86,9%. Em 2022, o percentual caiu para 73,5%.
“Hoje, nossa dívida tem uma trajetória insustentável. O novo arcabouço tem que indicar como é que o governo vai conduzir a dívida e trazê-la para parâmetros mais equilibrados e sustentáveis”, disse.
E o que o mercado espera do novo arcabouço fiscal?
Vilma da Conceição Pinto, do IFI, explica.
“Pra que essa regra seja crível, ela precisa ser simples, flexível, transparente e aplicável. Tem que ser de simples compreensão, transparente e aplicável para que não se transforme em uma letra morta”, diz a especialista.
“Não adianta a regra ser complicada ou não haver mecanismos de obrigar a sua aplicação. Se o mercado não tiver clareza sobre como ela irá funcionar, os efeitos podem ser negativos”, afirma Gabriel Leal de Barros.
Como pode afetar a taxa de juros?
Em resumo: se o novo arcabouço indicar que haverá mais controle sobre os gastos, a tendência seria de redução da taxa de juros. Do contrário, o mercado reagiria a uma percepção de maior risco sobre as contas públicas, pressionando os juros para cima.
Os juros estabelecidos pelo Banco Central têm sido um dos pontos mais criticados por Lula na área econômica. Segundo ele, o atual patamar da taxa (13,75%) afasta investidores e diminui a atividade econômica, afetando, por exemplo, a geração de empregos.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por sua vez, vem afirmando que os juros estão altos, entre outros motivos, por conta do quadro das contas públicas.
Em fevereiro, Campos Neto voltou a defender a disciplina fiscal durante uma sessão solene no Congresso Nacional.
“Hoje, o que a gente precisa concentrar é em ter uma disciplina fiscal, entendendo que precisamos ter um olho mais especial no social. Quanto mais transparente e eficiente o público for, mais aptos seremos para captar recursos privados”, disse.
Para Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV) e da Universidade de Brasília (UnB), a depender das regras que o governo apresentar, o mercado pode reagir positiva ou negativamente, afetando, por exemplo, a taxa de juros.
“Em um ambiente de maior incerteza, os investidores cobram um maior prêmio de risco, que tem impacto nos juros. Se o arcabouço fiscal sinalizar com redução do déficit, o mercado vai ficar menos pressionado e isso abrirá caminho para reduzir a taxa de juros”, disse Manoel Pires.
“O governo precisa sinalizar com esse novo arcabouço que vai conduzir as contas públicas de forma sustentável. E aí isso gera impacto no curtíssimo prazo reduzindo o risco e gera condições ou a percepção de que a taxa de juros pode começar a cair”, explica Vilma Conceição.
Por que novo arcabouço é primeira grande “batalha” de Lula no Congresso?
O primeiro deles é por motivos cronológicos. Se o novo arcabouço for apresentado ao Congresso em março, como planeja a equipe econômica do governo, sua tramitação deve começar antes da Reforma Tributária, outra proposta cara ao atual governo Lula.
Neste aspecto, o relógio corre contra o governo uma vez que, se o novo arcabouço não for aprovado neste ano, o orçamento de 2024 terá que seguir as regras fiscais antigas, ou seja: o governo Lula terá que se submeter ao teto de gastos que tanto criticou.
O segundo motivo é político.
“A aprovação do novo arcabouço vai ser o primeiro grande teste da base política do governo Lula e vai exigir muita articulação. Eu avalio que é mais complicado do que aprovar a reforma tributária porque nada impede o governo de adiar a reforma por alguns meses. O arcabouço, não”, diz o economista Manoel Pires.
“O arcabouço é como se fosse o Plano Real do Lula. Algumas pessoas vão dizer que estou exagerando, mas não acho que seja o caso. Essas regras serão fundamentais para ditar o futuro do governo, como o mercado vai reagir a ele e vão demandar muita negociação com o Congresso”, disse o economista Gabriel Leal de Barros.
“Em alguma medida, a aprovação do arcabouço pode criar condições melhores ou piores para a aprovação da reforma tributária”, completou Barros.
A preocupação sobre a capacidade de negociação e o tamanho da base parlamentar do governo tem sido uma constante nos corredores do Congresso Nacional.
Apesar de vencer Bolsonaro nas urnas, Lula não conseguiu eleger uma bancada no Parlamento capaz de lhe dar uma maioria folgada. O PL, partido de Bolsonaro, foi a legenda que elegeu o maior número de deputados federais, por exemplo.
Para ampliar sua base, Lula distribuiu ministérios para partidos aliados e tentou se aproximar de legendas que oscilaram entre ele e Bolsonaro, como o União Brasil, que tem três ministérios, mas ainda não firmou posição oficial a favor do governo do petista.
Mesmo assim, ainda não há certeza sobre se Lula conseguirá contar com uma base capaz de aprovar matérias importantes para o seu governo.
No dia 6 de março, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) disse que Lula não tinha votos suficientes para aprovar seus projetos.
“Hoje, o governo ainda não tem uma base consistente nem na Câmara, nem no Senado, para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matéria de quórum constitucional”, disse Lira.
Fonte: bbc.com