Metade das democracias liberais do mundo enfrenta atualmente a erosão de seus fundamentos, das quais sete estão em retrocesso – Brasil e Estados Unidos entre elas –, segundo o relatório de um think tank internacional divulgado nesta quarta-feira (30/11).
Problemas como desconfiança na legitimidade das eleições, descontentamento com os partidos, corrupção, fortalecimento da extrema direita e restrições à liberdade de expressão fizeram com que o número de países em erosão democrática seja o mais alto dos últimos anos.
“Esta deterioração vem de há muito tempo, e alguns dos fatores são estruturais: têm a ver com a consolidação de níveis muitos altos de polarização e a piora dos níveis de desigualdade, que faz com que as sociedades se desagregem”, diz Kevin Casas-Zamora, secretário-geral do Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA), que realizou o relatório.
Ele pontua também como motivos desse fenômeno a perda da capacidade das potências para levar a “mensagem democrática” a outras partes do mundo e alguns “erros monumentais”, como a guerra do Iraque, a crise financeira ou a experiência “terrível” do governo Donald Trump nos Estados Unidos, além da competição de outros modelos, como o da China.
Casas-Zamora identifica desafios “severos” à democracia em todo o mundo, acentuados pela “distância crescente e notada entre as expectativas sociais de bem-estar e as capacidades das instituições democráticas para atendê-las, particularmente em tempos de crise”.
Aos fatores estruturais, ele adiciona outros conjunturais, como o impacto político e econômico da pandemia e a guerra na Ucrânia.
Bolsonaro como motivo de preocupação
O relatório de 2022 do IDEA coloca sete nações no grupo de países que enfrentam retrocesso democrático, quando há um erosão mais severa e deliberada: Brasil, El Salvador, Hungria e Polônia estão em grave retrocesso, e Estados Unidos, Índia, Ilhas Maurício em retrocesso moderado.
No caso brasileiro, o IDEA observa que os seus índices que medem respeito aos direitos fundamentais, controle do governo e eleições livres caíram nos últimos anos.
A entidade aponta ainda que a crescente influência dos militares sobre a disputa política e o governo, além dos “ataques do presidente Jair Bolsonaro ao sistema de eleição” são “motivos de preocupação”. “Bolsonaro fez alegações infundadas contra o Tribunal Superior Eleitoral e o sistema de votação eletrônico”, diz o texto.
Casas-Zamora frisa que o caso dos Estados Unidos é particularmente preocupante, com forte polarização política, disfunção institucional e ameaças às liberdades civis. “Está claro neste ponto que a febre não foi controlada com a eleição de um novo governo [de Joe Biden]”, diz.
Ele destaca os altos níveis de polarização entre os americanos e as “tentativas de minar a credibilidade dos resultados eleitorais sem evidências de fraude”. O fato de um dos dois maiores partidos dos EUA ser um ator “semileal” à democracia faz do país um caso “claramente problemático”, apesar de estar longe do “colapso”.
Ásia e Pacífico retrocedem, África está “resiliente”
Mais de dois terços da população mundial vivem neste momento em democracias em erosão ou em regimes autoritários ou híbridos, segundo o IDEA, destacando as diferenças entre cada continente.
A Europa, diz o relatório, vive um processo de estagnação democrática, enquanto a Ásia e o Pacífico passam por uma clara regressão e uma “solidificação” do autoritarismo. Já a África permanece “resistente” à instabilidade, e registra melhorias em países como Gâmbia, Níger e Zâmbia.
O continente americano atingiu seu pico democrático em 2006 e 2007, quando apenas Cuba era considerado um país autoritário, mas hoje um terço das democracias enfrenta declínio na qualidade democrática e há agravamento da “repressão” em países como Nicarágua, Haiti e Venezuela.
O relatório também destaca aspectos positivos em alguns processos eleitorais e de alternância de poder na América Latina, como na Colômbia e em Honduras.
Novos contratos sociais
O declínio das democracias liberais é um fenômeno em sua fase inicial, e os próximos anos devem ser “muito complicados” em âmbito global, segundo Casas-Zamora.
“A ressaca política da crise da covid e da guerra está apenas começando, não aprendemos a lidar de forma competente com as ameaças que espreitam, como desinformação e polarização”, afirma
O relatório recomenda a promoção de contratos sociais “mais justos e sustentáveis”, a reforma das instituições políticas existentes e o fortalecimento das defesas contra o autoritarismo.
Apesar da tendência geral negativa, Casas-Zamora aponta para duas “reservas positivas”: a força do ativismo cívico e a robustez do componente eleitoral da democracia, como evidenciado pela realização bem-sucedida de eleições em condições extremas durante a pandemia.
Entre os exemplos de ativismo cívico, o relatório destaca os movimentos a favor da luta climática ou dos direitos indígenas, as iniciativas comunitárias sobre o cuidado infantil na Ásia ou o impulso a favor das liberdades reprodutivas na América Latina.
Fonte: dw.com