Passei um ano sem ir a Kherson. Voltar para casa depois de tanto tempo teria sido emocionante, mesmo em tempos de paz. Mas minha cidade natal é um lar no meio da guerra. Em meados de novembro, o Exército ucraniano voltou a Kherson, e as forças russas recuaram para a outra margem do rio Dnipro.
Desde então, moradores da cidade têm abraçado os soldados ucranianos todos os dias, pedindo autógrafos, esperando em filas por água e ajuda humanitária. Aprendendo a se esconder sob fogo de artilharia e contando como foram os nove meses de ocupação.
Caminho cheio de postos de controle
Kherson continua sendo uma cidade fechada, o acesso é restrito. Os militares e a polícia falam de “medidas de estabilização”. Jornalistas e trabalhadores humanitários só podem entrar e sair sob escolta militar.
A rodovia para a vizinha capital regional, Mykolayiv, está ficando cada vez mais movimentada. Veem-se colunas de caminhões com alimentos, combustível, geradores de emergência e ajuda humanitária. Em alguns lugares, a estrada foi danificada por bombardeios. Os desvios levam por estradas de terra mal transitáveis por causa das chuvas típicas de novembro. “Queridos, para onde vocês vão, há muita lama”, diz uma mulher idosa na vila de Kisseliwka, apontando para uma van dos correios atolada.
Os restos da famosa ponte Antonivsky, a maior de Kherson, ainda pendem sobre o rio Dnipro. As tropas russas entraram na cidade por essa ponte no final de fevereiro e a explodiram quando saíram. Um grafite mais antigo invoca a “vitória” russa, uma inscrição mais recente insulta os ocupantes.
Se você ficar aqui desprotegido em campo aberto apenas por um curto período de tempo, é baleado diretamente a partir do outro lado do rio. Os soldados russos montaram suas posições lá, perto da pequena cidade de Oleshki. Soldados ucranianos de um posto de controle próximo nos escondem sob uma ponte e nos aconselham a seguir em frente rapidamente.
Com colete à prova de balas pela cidade
Cercados por postos de controle, os habitantes de Kherson estão divididos: entre a alegria da libertação e o medo de uma nova fase da guerra. Afinal, a cidade está agora próxima à linha de frente.
Nem todos os residentes, dizem os soldados, já entenderam o que isso significa. Não há um sistema de alerta operacional contra ataques aéreos, nem abrigos seguros.
O Exército russo vem bombardeando Kherson. Explosões podem ser ouvidas com cada vez com mais frequência. Infraestrutura civil, edifícios do Exército e residenciais são alvo. O número de civis mortos ou feridos aumenta com o passar dos dias.
Enquanto isso, na rua Perekopska, dois homens derrubam um grande cartaz elogiando a anexação russa. Eles dizem que os russos colocaram tais cartazes por toda a cidade. “Pelo menos mais uma semana de trabalho para nós”, diz um deles.
Yuri Savchuk dobra cuidadosamente partes do cartaz. Ele é diretor de um museu dedicado à participação da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial. Savchuk retornou a Kherson nos primeiros dias após a libertação para documentar a guerra atual. “Já fiz 50 entrevistas sobre o assunto”, diz o historiador orgulhosamente.
E a vontade de falar é realmente grande. Quase todos, de boa vontade, contam sua história de resistência. Serhij Anatolijovitsh, um médico aposentado, oferece-se para me mostrar uma “câmara de tortura” russa onde os ocupantes aprisionaram dissidentes.
Ela fica numa numa antiga cadeia. Na entrada, há policiais. Lá dentro, investigadores documentam vestígios de tortura. Após a libertação, alguém escreveu na porta: “Glória à Ucrânia e a suas forças armadas”.
“De manhã você podia ouvir o hino russo, os detentos foram obrigados a cantá-lo. À noite, havia gritos terríveis”, lembra a vendedora de uma loja vizinha.
Advertências de minas na cidade
Antes de sua retirada, os militares russos colocaram minas muitas casas. Agora as equipes de remoção de minas estão trabalhando em vários prédios públicos, inclusive na biblioteca da cidade, onde estava instalado o serviço secreto russo. Uma delegacia de polícia foi explodida por precaução.
Outros objetos de infraestrutura crítica foram explodidos pelo próprio Exército russo antes da sua retirada. Em Kherson, não há água corrente, não há eletricidade.As pessoas fazem fila com baldes e garrafas nos poços privados ainda intactos. Sinal de celular e o acesso a internet estão voltando gradualmente. Nos primeiros dias, foram fornecidos terminais Starlink em alguns pontos de acesso público. “Apenas 64 pessoas podem se conectar ao mesmo tempo”, avisa uma placa num parque.
Os russos também explodiram a torre de radiodifusão em Kherson. Ela havia sido ocupada logo por eles para interromper as transmissões da televisão ucraniana. Agora, Vladimir, um homem idoso com uma jaqueta de camuflagem, vigia o que resta da torre. Vladimir sofre de hérnia de disco, mas não quer ir para o hospital de jeito nenhum. “Se não for eu, quem vai cuidar de tudo isso? Há aqui equipamentos valiosos, metais. Eu não quero que ninguém roube.”
Vladimir diz que antes da invasão russa ele havia se registrado em um subúrbio de Kherson para a defesa territorial. Depois, diz, ele informou o lado ucraniano sobre a movimentação das tropas russas para um aeroporto estrategicamente importante nas proximidades.
“Eu me agachei em um cemitério e fingi estar de luto por minha esposa”, diz ele. “Memorizei tudo e o transmiti aos nossos oficiais de reconhecimento ucranianos. Eu disse que havia dois ventiladores e cinco latas de carne em uma loja. Esse era nosso código secreto para helicópteros e transportadores de tropas.”
Filas para tudo
Em Kherson, a maior parte dos serviços públicos ainda não foi restaurada. Os residentes passam seu tempo em filas de espera para obter água, acesso à internet ou cartões de telefone ucranianos. No primeiro dia após a libertação, houve celebrações na praça principal.
Ainda há concertos diários, mas a maioria das pessoas agora prefere fazer fila para obter gratuitamente produtos de higiene, alimentos, roupas quentes e remédios. Restam alguns produtos russos nas lojas, especialmente bebidas e cigarros, mas cada vez menos. Desde outubro, dizem os fornecedores, não há mais reabastecimento.
Fonte: dw.com