“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”
Esse trecho do discurso que o antropólogo, etimólogo, educador, escritor e político Darcy Ribeiro (1922-1997) proferiu na Universidade Sorbonne, em Paris, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa, resume a singular e brilhante carreira do intelectual mineiro que não ficou circunscrito aos limites da academia.
Nesta quarta-feira (26/10), sua vida e obra são celebradas e relembradas por ocasião de seu centenário de nascimento.
Ele mesmo costumava dizer que era um homem com muitas vidas. Suas expedições acabaram virando livros e filmes, e são vistas hoje por acadêmicos e por seus seguidores como uma das etapas “visionárias” na sua trajetória.
“Visionário” foi a definição citada tanto pelo indigenista Toni Lotar, conselheiro da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), no Rio de Janeiro, que observou a preocupação do antropólogo com os indígenas e o meio ambiente, como pelo professor argentino da Universidade San Martin (Unsam), de Buenos Aires, Andrés Kozel, coautor do livro Os futuros de Darcy Ribeiro (Elefante Editora), lançado neste ano.
“Darcy estudou muitos assuntos que hoje estamos vivendo”, disse Kozel.
Seu amigo e escritor Eric Nepomuceno, que o visitou até os últimos de seus dias, disse à BBC News Brasil por que entende que Darcy foi um intelectual diferente.
“Darcy foi um desses pouquíssimos exemplos de intelectual que não fica de longe examinando números e estudando situações para depois teorizar soluções. Não, não: ele, que ao lado de Celso Furtado foi o intelectual brasileiro que mais peso e influência exerceu na América Hispânica na segunda metade do século 20, jamais ficou na contemplação”, diz Nepomuceno.
“Foi à luta, foi à realidade. Era um visionário, talvez, mas um visionário que foi para as trincheiras batalhar pelo que acreditava”, complementa.
Apaixonado pela questão indígena
Quando tinha 24 anos, mudou-se de São Paulo para uma comunidade indígena no Pantanal, em Mato Grosso do Sul. Mais tarde, moraria com outros indígenas entre o Pará e o Maranhão.
Eram os anos 1940 e 1950, e Darcy, ex-estudante de medicina, queria entender a vida dos povos originários. Não exatamente pelos estudos específicos da Medicina, mas por seu interesse pelos povos. Conta que acabou se apaixonando pela questão e ficou amigo dos indígenas.
“Eu fiz uma coisa pelos índios que foi criar o Parque do Xingu [em Mato Grosso]. Mas eles fizeram mais por mim. Eles me deram dignidade e hoje posso ir a qualquer país do mundo falar de índio”, disse.
No Diários Índios, ele relata sua experiência com os Urubus-Kaapor, na região amazônica. A convivência com esse povo foi transformada num filme do alemão Heinz Forthmann, que Darcy convidou para acompanhá-lo em algumas expedições amazônicas.
“Darcy identificou que os Urubus-Kaapor eram os últimos tupinambás, descendentes diretos deles”, afirmou a antropóloga Gisele Jacon de Araújo Moreira, que trabalhou sete anos com o intelectual, desde os tempos em que ele foi senador até seu falecimento.
Entre os fatos públicos que marcaram a vida política de Darcy Ribeiro está a presença do cacique xavante Mario Juruna, que teve seu apoio para ser o primeiro indígena eleito deputado federal.
Juruna, que foi do Partido Democrático Trabalhista (PDT), gravava, com um pequeno gravador, todas as declarações dos políticos. Era uma forma de poder cobrar depois que as palavras fossem cumpridas.
Em dezembro de 1994, então com 72 anos, Darcy ficou internado em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), no Rio de Janeiro, e quase morreu. Diferentes indígenas tribos fizessem rituais por sua cura.
Educação pública e gratuita
Ao chegar à casa dos 30 anos, após sua vida com os indígenas e sua aproximação com os irmãos sertanistas Villas-Bôas, Darcy conviveu com o educador Anísio Teixeira e passou a ter paixão pela educação.
Foi um defensor contumaz da educação pública e gratuita para todos, como um dos lemas fundamentais no Brasil.
“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, disse num discurso no início dos anos 1980.
Darcy dizia que, sem a educação, os colonizadores acabariam vencendo. “Darcy era sociólogo, antropólogo, escritor, romancista, político e estadista”, afirma o presidente da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), José Ronaldo Alves da Cunha.
Foi ministro da Educação e chefe da Casa Civil no governo de João Goulart (1961-1964), derrubado pelo golpe militar.
Nesse período, o projeto inovador da Universidade de Brasília, sem segmentação por departamentos, regrediu, recorda o presidente da Fundar. Por isso, naquele discurso na Sorbonne, Darcy disse ter “fracassado” ao citar a universidade.
Com a ditadura, Goulart e Darcy se exilaram em países da América Latina, e o intelectual foi convidado para dar palestras em várias universidades da região. O tempo no exílio acabou tendo influência na sua obra.
Era a “Pátria Grande”, dizia ele, expressão citada por governos de centro-esquerda e de esquerda da América do Sul para se referir à região
Darcy foi filiado ao PDT, vice-governador do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola e senador da República quando criou o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
A lei, aprovada em 1996, é chamada de Lei Darcy Ribeiro e estabelece pontos para a formação dos profissionais de educação, para garantir o acesso de toda a população à educação gratuita e de qualidade, para valorizar os profissionais da educação e do dever da União, do Estado e dos municípios com a educação pública. A lei continua em vigor.
“Darcy era um homem político. E ele fazia a política no melhor sentido da expressão”, disse José Ronaldo. Ele se construiu buscando as “matrizes” brasileiras, com os indígenas, com os movimentos negros, com a educação e com a política.
Ex-integrante do Partido Comunista, nos tempos da juventude, onde dizia ter aprendido muito sobre a importância de conceitos, por exemplo, da educação e da reforma agrária, ele não demonstrava convicção plena no comunismo e acabou se afastando do partido.
Entre seus amigos, já na idade adulta, estava o arquiteto Oscar Niemeyer, comunista declarado, com quem compartilhava interesses de inclusão social.
Foi já nos anos 1980, no governo Brizola, que concretizou o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Ele acompanhava as obras das escolas, o currículo escolar e defendia a cultura local, recorda Gisele Jacon.
O legado de Darcy Ribeiro também inclui o Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do Xingu), o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, a Universidade Nacional de Brasília (que, por ideia dele, tem um “beijódromo”), o Monumento ao Zumbi dos Palmares e o Sambódromo do Rio de Janeiro (que, por ele, seria utilizado como escola nos períodos fora do Carnaval).
Fuga do hospital para escrever
Um mês após a internação na UTI, considerado um paciente terminal, em janeiro de 1995 Darcy foge do hospital para concluir em uma casa de praia em Maricá (RJ) seu livro O Povo Brasileiro – a Formação e o Sentido do Brasil, um clássico sobre a identidade e as muitas diversidades regionais brasileiras e que virou documentário.
“Eu não queria morrer sem terminar esse livro. Eu passei 30 anos e 40 dias escrevendo esse livro”, recordou três meses depois daquela fuga.
“Das pouquíssimas brigas sérias que tivemos, uma delas foi porque me recusei a ajudar o Darcy a fugir do hospital. Depois estive um sem-fim de vezes com ele na casa de Maricá, uma praia perto do Rio, onde se abrigou”, recordou Nepomuceno.
Sobre o livro, Darcy contou em 1995 em entrevista ao programa Roda Viva que queria saber “por que o Brasil não deu certo. Por que perdemos? Por que mais uma vez a direita ganhou? Porque o Brasil não deu certo do ponto de vista do seu povo?”.
Para ele, o país era algo novo e que merecia ser estudado, compreendido.
“O Brasil é um gênero novo humano. Fundir herança genética e cultural índia, negra, europeia num gênero humano novo. Numa coisa nova. Nunca houve. Isso é a aventura brasileira”, disse.
Ele morreu dois anos depois, em 1997, em Brasília, e naqueles dois últimos anos de vida ainda escreveu a autobiografia Confissões.
Otimismo e inconformismo
Para o presidente da Fundação Darcy Ribeiro, o antropólogo e educador era otimista, mas sofria muito com o que ele enxergava do futuro. “Aquilo que o Brasil poderia ser (…) e ele sofria pelo que o Brasil ainda não era”, afirmou.
Ao mesmo tempo era definido como otimista, Darcy era também inconformado ou indignado, como dizia.
“A classe dominante sempre se deu bem e continua se dando bem. Mas o povão tá aí, com uma fome que é espantosa. Por que há fome nesse país?”, disse e escreveu há quase 30 anos.
Ele provocou prantos no discurso que fez no enterro do cineasta Glauber Rocha, em 1981, ao afirmar que, certa vez, o artista chorava e dizia “o país que não deu certo”.
“Glauber chorava a dor que todos os brasileiros deveriam chorar, a dor das crianças com fome no Brasil, a dor do país que não deu certo. Glauber chorava a estupidez, a brutalidade, a mediocridade, a tortura.”
Ao buscar entender a humanidade e, especialmente o Brasil, Darcy Ribeiro dizia que buscava e constatava “beleza”. Nepomuceno diz que o intelectual deixou um legado imenso, mas lamenta que o Brasil seja um país “desmemoriado”.
“Recorro ao próprio Darcy para chamar à lembrança os três pontos cruciais de tudo que ele fez, que moveram sua luta perene: educação para todos, salvar os indígenas e a floresta, reforma agrária. Criar uma sociedade com plena e palpável noção de seus direitos, distribuir a consciência da necessária cidadania. Entender, como defendeu com clareza um de seus amigos, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (As Veias Abertas da América Latina), que a história não pode se limitar a ser herança, tem de ser construída”, disse.
– Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63393757
Fonte: bbc.com