Os negros são 56% da população brasileira, mas sua representação na última bancada eleita para a Câmara dos Deputados equivaleu a menos da metade disso: 24%. Entre as mulheres negras, o hiato é ainda maior: elas são 28% da população, mas apenas 2,5% dos deputados federais eleitos no pleito de 2018 –13 das 513 cadeiras.
Nesses últimos quatro anos, se por um lado ocorreram mudanças positivas que afetam a eleição de negros para cargos no Legislativo, como novas regras que favorecem o lançamento e o financiamento de candidaturas e uma conscientização crescente sobre o tema entre negros e brancos, fruto também dos resultados da política de cotas; por outro, críticos afirmam que as novas normas eleitorais não garantem diversidade.
Além disso, representantes do movimento negro apontam desenvolvimentos negativos ligados ao governo de Jair Bolsonaro, que com frequência minimiza a existência do racismo no país. Já na campanha de 2018, ele afirmou em Fortaleza: “Aqui no Brasil não existe isso de racismo.” Na última segunda-feira (12/09), chamou um apresentador que o entrevistava de “meio escurinho” para em seguida questionar, com ironia, se isso seria “crime”.
Uma pesquisa recente do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apontou que o medo de sofrer violência política aumentou entre os negros que atuam politicamente. Um dos autores do estudo, o cientista político João Feres, afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que “o fato de a extrema direita ter saído do armário” elevou a sensação de insegurança entre os negros. O país também chocou-se com o assassinato de Marielle Franco, ocorrido em março de 2018 e cujo mandante ainda é desconhecido.
Com o objetivo de aumentar as chances de candidaturas, a Coalizão Negra Por Direitos, que reúne 250 organizações da sociedade civil, lançou uma iniciativa para apoiar pessoas negras comprometidas com as pautas do movimento que se lançaram a cargos no Congresso Nacional e em Assembleias Legislativas. Chamado Quilombo nos Parlamentos, o projeto apoia 120 candidaturas de oito partidos de esquerda e centro-esquerda (PT, Psol, PSB, PCdoB, Rede, PDT, UP e PV).
A iniciativa realizou um ato em São Paulo nesta terça-feira com líderes e formuladores do movimento negro. A plateia também foi composta por artistas e influenciadores brancos, convidados para dar maior amplitude à iniciativa.
Percepção sobre o racismo aumentou
O professor Hélio Santos, presidente do Instituto Brasileiro da Diversidade e um dos oradores do evento, identifica nos últimos anos uma mudança “significativa” na sociedade brasileira em relação à percepção do racismo. “Essa roda não girou na velocidade nem na profundidade que gostaríamos, mas essa percepção aumentou”, considera.
Ele avalia que a baixa representatividade de negros em cargos no Legislativo relaciona-se com a manutenção do Brasil entre os países mais desiguais do mundo, e que o apoio a candidaturas de pessoas negras é uma ação afirmativa que contribui para corrigir injustiças acumuladas ao longo da história brasileira. “Queremos civilizar o Brasil pela equidade, que significa igualdade de tratamento e igualdade de oportunidade”, diz.
Essa maior percepção do racismo e da necessidade de superá-lo não chegou apenas aos negros, mas também a uma parcela da população branca, afirma a psicóloga e escritora Cida Bento: “Estamos vivendo uma coisa muito diferente hoje. Nossa voz nunca foi tão ouvida nas periferias, a gente nunca impactou tanto a nossa população negra. E nunca tivemos tantas organizações e pessoas brancas país afora se perguntando: ‘o que eu faço agora?'”
O ponto foi reforçado pela filósofa Sueli Carneiro, que citou o também filósofo jamaicano-americano Charles W. Mills, autor de O Contrato Racial: “Ele dizia que toda pessoa branca é, independente de sua vontade, beneficiária do racismo, mas nem toda pessoa branca é necessariamente signatária do contrato racial que o racismo institui.”
Carneiro avalia que a Coalizão Negra Por Direitos deu um “salto qualitativo” nos últimos anos, “conseguiu furar a bolha do próprio movimento” e ajudou a “fazer emergir essa novidade que é o antirracismo branco, ainda tímido, pequeno, mas que já começa a mostrar um potencial de construir essa parceria estratégica”.
Outro aspecto que favorece a candidatura de pessoas negras neste ano é o aprimoramento de estratégias testadas em campanhas passadas, afirmou Mônica de Oliveira, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Ela disse que o movimento vem apoiando as candidaturas com cursos de formação política e media training, oferecimento de designers para produzir peças de campanha e auxílio na articulação política. Sua organização também reuniu-se com diretorias estaduais de partidos para sensibilizá-las sobre essas candidaturas.
Além disso, as eleições de 2022 serão as primeiras da história do Brasil com mais candidatos negros do que brancos: 49,57% declararam-se negros e 48,86%, brancos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas os negros ainda são minoria nas disputas deste ano para os cargos mais altos. Eles representam 31,3% dos candidatos a senador, 38,6% dos candidatos a governador e 47,4% dos candidatos a deputado federal.
“Ser candidato negro é algo de muita coragem”
Apesar dos avanços, o momento atual também impõe dificuldades para a candidatura de pessoas negras, enfatiza Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco e irmã da ex-vereadora do Rio. “É um momento muito delicado o que a gente está vivendo”, disse, lembrando o assassinato de Marielle, as milhares de mortes na pandemia de covid-19, os casos de negros mortos por seguranças particulares e policiais no Brasil e a gestão Bolsonaro, segundo ela “uma pessoa que zomba de mortes e o tempo inteiro fala que não existe racismo no Brasil”.
“Para todo mundo que se coloca para ser candidato, é um lugar de muita coragem. O mínimo que eles podem atacar, eles atacam. Quando a branquitude aperta, a negritude sente mais. Seja na academia, seja nos parlamentos, seja na internet”, disse. Uma das linhas de atuação do Instituto Marielle Franco é o combate à violência política de gênero e raça.
“Esta eleição é uma questão de sobrevivência”, afirmou Franco. Para ela, uma forma de tentar convencer negros a votarem em candidatos negros é dar ênfase à pauta social e econômica, mencionando temas como a fome, a inflação e a perda do poder de compra.
O risco para as pessoas negras que se candidatam também foi mencionado pelo professor Hélio Santos. “Essa maior percepção [do racismo] teve uma reação, fez o fascismo e o supremacismo branco perderem a vergonha de se apresentarem”, disse.
Abismo entre financiamento de candidaturas brancas e negras
Há ainda a resistência de legendas em apoiar financeiramente as candidaturas negras. Um levantamento da DW, baseado em dados compilados pelo projeto 72 Horas com a parcial do TSE da manhã da segunda-feira, identificou um abismo entre o montante de recursos destinado a mulheres brancas e negras a menos de três semanas da eleição.
A desigualdade é mais perversa no PSDB, no qual candidatas brancas receberam, em média, 2,6 vezes mais do que negras – uma diferença de R$ 218 mil. No PL, mulheres brancas levaram quase o dobro, com R$ 135 mil a mais em média. No MDB, se considerada a candidatura de Simone Tebet, brancas tiveram valores 2,7 vezes superiores – sem Tebet, a proporção cai para 1,6.
No PT, pretos e pardos – metade dos nomes lançados pelo partido – também não têm recebido repasses proporcionais à quantidade de candidaturas. A fatia de recursos do fundão eleitoral investida nesse segmento foi de 23% até a referida parcial.
Fonte: dw.com