Será que é possível nutrir bebês e crianças exclusivamente com uma dieta vegana?
Entre sociedades médicas — como a Academia Americana de Pediatria e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) — a recomendação é evitar uma alimentação sem nenhuma fonte de origem animal até os dois anos de vida.
Mas os especialistas admitem que, sim, até dá para excluir carnes, ovos, laticínios e outros produtos de origem animal das refeições dos pequenos — mas é preciso tomar um enorme cuidado para garantir um aporte adequado de nutrientes, vitaminas e minerais para eles.
Isso envolve escolher bem os ingredientes que vão à mesa e, em alguns casos, até partir para a suplementação com comprimidos e injeções.
Todo esse processo, inclusive, deve ser acompanhado de perto por profissionais de saúde, como pediatras e nutricionistas, para evitar problemas no desenvolvimento do corpo e da mente.
“Os dois primeiros anos de vida são um período crítico, em que o cérebro e o corpo da criança se desenvolvem bastante e precisam de uma grande variedade de nutrientes”, explica a médica Fabíola Suano, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da SBP.
“Ou seja, uma carência nutricional nessa fase pode representar um risco para toda a vida”, complementa.
A falta de alguns desses compostos que aparecem exclusivamente ou em mais abundância nos alimentos de origem animal, como a vitamina B12, o ferro e o cálcio, por exemplo, está relacionada a déficits no desenvolvimento dos ossos e dificuldades na formação de estruturas do cérebro importantíssimas para a memória, o aprendizado e o raciocínio.
Saiba a seguir quais são as principais recomendações dos especialistas e como pais e mães veganos podem garantir uma boa saúde ao filho, se desejarem mantê-lo longe de carnes, ovos, leites e afins durante a infância
Entidades como a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde recomendam que o bebê seja alimentado exclusivamente com o leite materno até o sexto mês de vida.
Nesse ponto, a alimentação da mãe pode fazer toda a diferença: como os nutrientes primordiais chegam ao bebê através do leite materno, é importante que a mulher coma bem e tenha níveis adequados de vitaminas e minerais.
“Muitas vezes, a mãe que adota uma dieta vegana precisa tomar injeções de vitamina B12, para garantir que esse composto esteja no leite dela”, exemplifica Suano, que também é professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Quando o aleitamento não é possível, a alternativa nesses casos é utilizar as fórmulas à base de proteína hidrolisada de arroz ou de proteína isolada de soja.
A amamentação, aliás, continua a ser recomendada até os dois anos de idade — nesse período, porém, vale introduzir aos poucos outros alimentos.
É justamente aí que muitos pais que adotam uma dieta vegetariana ou vegana ficam em dúvida: é possível excluir alguns ou todos os produtos de origem animal da alimentação dos filhos?
A mais recente diretriz da SBP sobre o tema, publicada em 2017, admite que “uma dieta vegetariana bem balanceada é capaz de promover crescimento e desenvolvimento na infância e na adolescência”.
O documento está alinhado com a posição de outras entidades do setor, como a Associação Dietética Americana e a Academia Americana de Pediatria.
“Entretanto, por serem mais vulneráveis a desenvolver deficiência de nutrientes, [essas crianças] devem ser adequadamente monitoradas e muitas vezes suplementadas, já que o risco é proporcional à menor variedade dos grupos alimentares consumidos”, aponta o texto.
Já a dieta vegana especificamente, que corta todos os produtos de origem animal, é vista com ressalvas nesses primeiros dois anos de vida.
“É preciso conversar com a família e encontrar um meio termo. Se os pais não querem dar carne vermelha, será que não seria possível preparar um peixe ou um ovo?”, sugere Suano.
“Se entre os seis meses e os dois anos a criança é submetida a uma dieta totalmente vegana, ela fica com uma diversidade alimentar e nutricional muito restrita”, acredita a médica.
A pediatra ressalta que esse debate está longe de chegar a um consenso, mesmo entre os especialistas da área. “Algumas entidades dizem que, sim, é possível adotar o veganismo a partir dos seis meses de vida, enquanto outras consideram a prática arriscada e contraindicada”, compara
Essa orientação está, inclusive, em materiais publicados pela Sociedade Vegetariana Brasileira.
Como qualquer tipo de estilo de vida, eliminar os ingredientes de origem animal tem vantagens e desvantagens.
Por um lado, uma alimentação desse tipo está relacionada ao consumo de menos calorias e gorduras saturadas, o que diminui o risco de quadros como obesidade e doenças cardiovasculares na infância e ao longo da vida.
O maior teor de fibras alimentares, vindas dos vegetais, também representa uma ótima notícia para o funcionamento do sistema digestivo — apesar de isso poder interferir na absorção de alguns minerais.
Por outro, a ausência de carnes, ovos e laticínios no prato representa um risco de faltarem ferro, vitamina B12, cálcio e zinco no organismo.
A grande questão, explicam os especialistas, é que alguns desses micronutrientes são mais comuns nos produtos de origem animal — frutas, verduras e legumes até carregam uma boa quantidade deles, mas a biodisponibilidade (ou a porção que nosso corpo absorve daquilo) é mais baixa.
Como evitar problemas
É preciso considerar também que nem sempre uma dieta menos calórica ou com pouca gordura representa uma boa notícia. Afinal, as crianças precisam desses nutrientes na medida certa para crescer bem e com saúde.
Uma revisão de estudos feita no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, em São Paulo, apontou que crianças adeptas de uma dieta vegetariana tendem a ser mais baixas e magras, embora os valores médios de altura e peso delas ainda estejam dentro dos valores considerados normais.
Outra preocupação constante dos especialistas está na ausência de micronutrientes essenciais à saúde.
Um dos exemplos disso é o ferro, que constitui a hemoglobina, uma molécula presente nas células vermelhas do sangue responsáveis por transportar oxigênio para todas as partes do corpo. Ele também é essencial para a imunidade e para a fabricação dos neurotransmissores do cérebro.
A deficiência deste mineral está relacionada a “alterações do desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento do sistema imunológico e diminuição da capacidade de trabalho”, lista o material da SBP.
Para garantir a presença do ferro na dieta, é possível partir para algumas estratégias simples, como deixar o feijão de molho por 12 horas. Isso diminui a presença de moléculas que afetam a biodisponibilidade desse mineral.
Outra ideia é consumir vegetais ricos nesse micronutriente, como lentilha, feijão e ervilha, junto com fontes de vitamina C, caso da laranja e do limão, o que aumenta a absorção do ferro pelo nosso organismo.
Até é possível encontrar esse mineral em alguns vegetais, mas a biodisponibilidade dele também é uma barreira importante.
Para as crianças que fazem uma dieta completamente vegana, o caminho mais seguro é a suplementação do cálcio, que garante um aporte suficiente para o desenvolvimento do esqueleto.
A mesma recomendação vale para a vitamina B12, que só aparece nas carnes, nas vísceras e nos ovos.
Como ela é essencial para a circulação sanguínea e para a estrutura que recobre e protege os neurônios, médicos e nutricionistas prescrevem suplementos ou indicam o consumo de alimentos fortificados.
Outros micronutrientes que exigem uma atenção extra nesse contexto são o zinco, o iodo, a vitamina A, o ácido fólico, a vitamina D e o ômega 3.
Em alguns casos, será preciso reforçar o consumo de alguns alimentos fortificados ou ampliar a oferta de ingredientes de origem vegetal específicos, que trazem uma certa quantidade desses compostos.
Em outros, resta partir para a suplementação por meio de cápsulas, comprimidos e injeções.
No final das contas, uma pitada de bom senso e o acompanhamento de profissionais de saúde vai ser essencial para garantir um bom desenvolvimento da criança que faz uma dieta vegana ou vegetariana nesses primeiros anos de vida.
“Nós sabemos que o vegetarianismo e o veganismo cresceram muito nos últimos anos, seja pela busca de uma dieta mais saudável, seja pela preocupação com o meio ambiente”, analisa Suano.
“E nós, como profissionais de saúde, precisamos conversar com as famílias, entender o ponto de vista delas e chegar a um meio termo satisfatório e saudável para todos os envolvidos”, conclui a pediatra.
– Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62736718..
Fonte: bbc.com