Abraçada aos dois filhos e a mãe, Dala Mahmoud estampava no rosto o desgaste provocado por duas semanas de ataques aéreos até conseguir voltar ao Brasil. “Só o que quero agora é abraçar meus filhos, ficar aqui no sossego, e dormir. Faz 20 dias que eu não durmo, porque ficávamos esperando a qualquer momento uma ameaça que nos obrigaria a ter deixar o local onde estamos”, conta a descendente de libaneses de 38 anos, que visitava o país para cuidar do patrimônio do pai – hoje ameaçado de ruir após bombardeios.
Até pousar na Base Aérea de São Paulo na manhã deste domingo (06/10), a bordo do Airbus A330-200 da Força Aérea Brasileira (FAB), Dala e a família conviveram de perto com os bombardeios realizados por Israel desde o começo de outubro em Beirute. O primeiro voo de repatriação trouxe 229 brasileiros vindos do Líbano, após decolar no dia anterior em Beirute, tendo feito com escala em Lisboa. Dos passageiros, dez são crianças de colo. Além disso, também viajaram três animais de estimação
“Estávamos no bairro onde eles estão atacando agora, então fugimos para uma aldeia entre a capital e o Bekaa. Atacaram lá de novo no domingo, passado, então saímos correndo. Ficamos no aeroporto, de onde deveríamos partir na quarta, mas nosso voo foi cancelado, e a única esperança foi este voo organizado pela embaixada”, conta.
A operação envolveu o Itamaraty e os ministérios da Defesa e de Desenvolvimento Social. Os recém-chegados foram recebidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Enquanto houver um companheiro, seja brasileiro ou parente de brasileiro, lá no Líbano que quiser vir para o Brasil, vamos buscar, porque nós não deixaremos ninguém para trás”, disse Lula. “Que vocês encontrem aqui no Brasil a felicidade que tiraram de vocês no Líbano”, completou.
Quem deixou parentes para trás pede agilidade na operação de resgate. Sereem Hijazi deixou a filha e as duas netas em Beirute. Segundo ela, as três estão na lista de brasileiros que serão repatriados, mas não foram selecionadas para este primeiro voo. “Quando a embaixada ligou para confirmar meu lugar, chorei o dia inteiro. Confirmei a presença, mas querendo sair para não deixar minha filha”, se emociona a jordaniana de 57 anos. “Foi ela quem me convenceu a ir.”
Ansiedade de quem espera
Para os brasileiro-libaneses que moram aqui e não tem previsão de rever a família, sobra ansiedade e aflição. Fátima Jebai, de 37 anos, não abandona o celular há dez dias em busca de notícias da terra natal. O maior temor é receber uma mensagem avisando que algo tenha acontecido a seu pai. Morador do sul do Líbano, seu pai, de 61 anos, contrariou o resto da família e não abandonou a terra onde viveu toda a vida. Ao falar dele, Fátima se emociona:
“Ninguém dorme direito. Por causa do fuso horário de seis horas, a partir das duas da manhã já acordamos para acompanhar as notícias de lá. Ninguém gosta de ficar no perigo, mas às vezes eu gostaria de ir para lá somente para não ficar me questionando se vou vê-lo de novo. Será que vou ter a oportunidade de continuar a minha vida com ele e meus parentes agora espalhados pelo país?”, questiona.
A mãe e a irmã abandonaram a cidade natal na região de Tiro, onde viviam, em direção a Beirute. A cidade é a maior do sul do Líbano, principal alvo dos bombardeios israelenses e que concentra maior atividade do grupo Hezbollah.
As duas mulheres, que viajaram acompanhadas da filha pequena, se juntam às quase 350 mil pessoas deslocadas no Líbano, de acordo com a agência da ONU Organização Internacional para as Migrações (OIM). Cerca de 137 mil delas estão vivendo em abrigos improvisados, como escolas e mesquitas, abertas aos refugiados.
“Minha irmã, que está grávida, junto com a minha mãe e com a minha sobrinha de três anos, ficaram no trânsito por dez horas. Dez horas em um percurso de 80 quilômetros até Beirute, que leva normalmente uma hora e dez minutos, até conseguirem chegar lá com a estrada repleta de carros e explosões ao longe”, conta a designer de interiores que diz não conseguir trabalhar desde o início dos mais recentes ataques de Israel no Líbano.
A meta agora é tirar a família do país. Sua prima chegou ao Brasil esta semana após fazer três escalas, a última delas em Atenas, até chegar a São Paulo, onde mora Fátima e parte de sua família.
Voos de repatriação
Para ajudar no esforço de remover cidadãos brasileiros do Líbano, o governo brasileiro deu início na última semana à Operação Raizes do Cedro. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores (MRE), mais de 3 mil já preencheram o formulário que solicita ajuda para retornar ao Brasil. E a expectativa é que o número de pedidos cresça ainda mais nos próximos dias. Com apenas uma aeronave em operação, ao menos 14 voos serão necessários, exigindo agilidade na logística. O comandante da Aeronáutica Marcelo Kanitz Damasceno afirmou que a segunda missão teria início já neste domingo.
Caso a missão seja bem-sucedida, será a maior repatriação da história do país. Em 2023, o governo brasileiro resgatou cerca de 1,5 mil pessoas da Faixa de Gaza, após o início do confronto contra o Hamas. Até então, a maior repatriação da história. Em 2022, cerca de 100 pessoas foram repatriadas da Ucrânia, momentos depois do início da invasão russa do país.
O Itamaraty estima que 21 mil brasileiros morem no Líbano – formando a maior comunidade brasileira no Oriente Médio e uma das maiores no mundo.
No caminho oposto, os dados mais recentes da embaixada do Líbano no Brasil mostram aproximadamente 10 milhões de libaneses vivendo em solo brasileiro. Isso representa mais que o dobro de pessoas que vivem no próprio país do Oriente Médio.
Passaporte libanês
Única na família com passaporte brasileiro, a dona de casa Fátima Faris, de 51 anos, não vê saída para os membros da sua família. Na última sexta-feira, sua sobrinha e os três filhos foram despertados por uma explosão próxima da casa onde vivem.
“Meu irmão pulou da cama, saiu gritando, procurando o filho, checando se estava tudo bem. Porque na hora que estoura a bomba, as casas tremem, o prédio treme, e você vai procurar seus filhos nos quartos, se estão na cama, se estão vivos”, conta a libanesa há 21 anos radicada no Brasil, que comenta aliviada. “Ninguém se machucou, não caiu o vidro…Porque, na hora, você não sabe se o prédio está caindo, o mundo está caindo, se está todo mundo vivo ou não. É um terror”.
Ela completa emocionada: “Por lá ninguém faz planos de um ou dois anos, porque não sabe se amanhã vai acordar ou morrer”.
O filho de 23 anos passa o tempo conferindo a destruição em vídeos enviados pelos primos hoje moradores do Vale do Beqaa. Pela primeira vez em anos não viajou ao país, durante as férias de julho. Na última explosão recente, a estrada que liga o Líbano à Síria foi atacada, impedindo o trânsito de veículos na principal ligação entre os vizinhos. Mais de 175 mil pessoas já cruzaram a fronteira Líbano-Síria nas últimas duas semanas.
Como jusfiticativa, Israel afirmou que a rodovia era usada por membros do Hezbollah para importação de armamentos. Hoje quem cruza a região são pedestres com malas sobre as suas cabeças, uma situação que ela lamenta. Um lamento que se torna ainda mais forte quando folheia um livro de fotos do país antes e depois da última invasão, realizada em 2006. Um trauma ainda muito vivo para ambas as Fátimas.
Fonte: dw.com