Instrução normativa publicada em fevereiro reduziu tetos da lei, limitando cachês e montantes que podem ser captados
A Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, foi criada em 1991, durante o governo de Fernando Collor. Através dela, produtores culturais podem buscar financiamento privado para desenvolver seus trabalhos. Como compensação pelo dinheiro investido, as empresas abatem do imposto de renda parte do valor aplicado. Para usufruir da lei, os produtores devem enviar seus projetos para o governo federal, que os analisa. A aprovação pelo governo não significa patrocínio imediato, mas sim a autorização para que os contemplados busquem o financiamento junto a empresas ou pessoas físicas. O dinheiro, portanto, não vem diretamente dos recursos públicos.
Com a Instrução Normativa de 8 de fevereiro de 2022, o governo oficializou alterações adiantadas em uma portaria de julho de 2021. As principais mudanças envolvem a diminuição dos tetos previstos na lei. A partir de agora, o cachê por apresentação para artistas solo, que era de até R$ 45 mil, passa para até R$ 3 mil, uma redução de 93% no valor. Para músicos, o teto é de R$ 3,5 mil e para maestros, R$ 15 mil por apresentação.
O limite do montante que pode ser captado também diminuiu. De R$ 10 milhões, valor vigente desde abril de 2019, passou para R$ 6 milhões. Vale lembrar que em abril de 2019 o teto já havia sido reduzido de R$ 60 milhões para R$ 10 milhões. Dentro do limite de R$ 6 milhões, os valores máximos que podem ser captados dependem da categoria na qual o projeto se encontra. Projetos classificados em tipicidade normal, como teatro não musical, estão autorizados a captar até R$ 500 mil. Já os de tipicidade singular – desfiles festivos, eventos literários, exposições de arte e festivais – têm teto de R$ 4 milhões. Por sua vez, os projetos classificados em tipicidade específica, como concertos sinfônicos, museus e memória, óperas, bienais, teatro musical e datas comemorativas – Carnaval, Páscoa, festas juninas, Natal –, podem captar até R$ 6 milhões. Estão habilitados a ultrapassar esses valores projetos considerados especiais, como iniciativas envolvendo patrimônio tombado.
O teto para o valor do aluguel de teatros e salas de apresentação que podem ser pagos com recursos da lei caiu, ficando agora em R$ 10 mil. Diminuiu também o montante que pode ser usado para divulgação. Anteriormente, projetos de até R$ 300 mil podiam usar até 30% do dinheiro captado, enquanto os demais projetos poderiam dispor de até 20%. Agora, projetos de tipicidade normal dispõem de até 20%, projetos de tipicidade singular, 10%, tipicidade especial, 5%, e tipicidade específica, R$ 500 mil.
Diminuiu também o prazo para captação dos recursos: os 36 meses anteriores viraram 24. Outra mudança é que patrocinadores cujas aplicações passem de R$ 1 milhão em um projeto deverão dirigir 10% do valor para projetos que não obtiveram patrocínio em anos anteriores, dentro das áreas de capacitação cultural, acervo museológico público, patrimônios imateriais registrados e patrimônios materiais tombados, museus e bibliotecas públicas de regiões com menor potencial de captação. As empresas também ficaram proibidas de aplicar recursos por mais de dois anos consecutivos em projetos de um mesmo proponente.
Outro destaque da instrução normativa é o aparecimento de arte sacra e belas artes como categorias distintas, com uma ênfase que não aparecia anteriormente. Por ocasião da publicação da instrução normativa, o secretário de Cultura Mário Frias afirmou que o objetivo das alterações é tornar a lei mais justa e popular.
Uma “antipolítica de caráter predatório”
O professor Luiz Fernando Ramos, chefe do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, critica o teto para o cachê de artistas definido pela instrução normativa. Segundo o professor, o limite de R$ 3 mil é irrisório, mesmo para artistas iniciantes, e faz parte da política cultural do atual governo, uma “antipolítica de caráter predatório que busca punir e torturar os artistas”.
“Ainda que possa haver um argumento demagógico de distribuição mais extensiva dos apoios, essa instrução normativa implica uma interferência abusiva do governo federal sobre uma lei que, no seu espírito, deveria ser regida pela iniciativa privada, que escolheria os seus projetos servindo-se do expediente de renúncia fiscal”, afirma Ramos. “Se, de fato, ao longo dos anos, houve um monopólio da lei pelos grandes empresários da cultura, distorcendo o que deveria ser o apoio a projetos sem grande apelo comercial mas de importante conteúdo cultural, a nova diretriz quase que inviabiliza a lei para esse contingente de projetos maiores e com grande viabilidade comercial, sem beneficiar os projetos que mais necessitam de apoio empresarial. Desveste-se um santo sem vestir nenhum outro. Típica ação destrutiva e revanchista contra a cultura e a arte.”
Nesse sentido, o professor Carlos Augusto Calil, docente do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA e ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo, salienta que a Lei de Incentivo à Cultura não é um mecanismo de distribuição regional de investimentos. “Ela é baseada em renúncia fiscal e a renúncia só existe onde há produção industrial forte ou rede de serviços poderosa. Onde a atividade econômica é fraca naturalmente não se gera renda e, portanto, não se recolhem impostos. A Lei Paulo Gustavo, recentemente aprovada, é mais eficiente para distribuir o recurso público na federação.”
Calil vai mais além na reflexão. Para o professor, a Lei Rouanet nunca foi compreendida em sua verdadeira dimensão. “Ela não pode substituir o investimento direto do poder público, como vem fazendo. Ela o complementa, a partir de iniciativas oriundas da sociedade. Em consequência, não deveria ser tão liberal ao promover a renúncia fiscal a 100%. Ela deveria exigir uma participação substancial do parceiro privado proponente em projetos de reconhecido interesse público.”
Conforme aponta Ramos, alterações na lei são necessárias para corrigir suas distorções. Como exemplo dessas distorções, o professor cita projetos de empresas multinacionais, “que não dependem da renúncia fiscal para realizarem seus projetos massivos e ainda assim vinham acessando esses mecanismos e obtendo lucros impressionantes sem quase nenhum investimento próprio, como o Cirque de Soleil e gigantes cinematográficas como a Disney, que já obtiveram apoios por meio da Rouanet”.
De acordo com Calil, a regulamentação é necessária para limar excessos, mas não deve vir com o viés político que o atual governo tenta impor, contaminando o debate e castigando a área artística. “Isso foi feito em São Paulo, na Prefeitura, com o Decreto 46.595/2005”, exemplifica o professor. “Esse decreto disciplinou os mecanismos da então Lei Mendonça, que não impedia o uso indevido de recursos públicos em projetos caros e irrelevantes. Nele, uma condição foi imposta: a da imprescindibilidade de recursos públicos na execução dos projetos.”
Para Calil, a liberalidade das leis de incentivo à cultura no Brasil, como a Lei Sarney, a Lei Mendonça e a Lei Rouanet desvirtuada, acabou por dispensar o setor privado de cumprir sua obrigação de promover a cultura e as artes com verbas corporativas. “Consagrou a frase ‘Fazer abano com o chapéu alheio’”, conclui o professor.
Fonte: brasilcultura.com.br