A partir de janeiro, todo café brasileiro que entrar na União Europeia (UE) deverá estar acompanhado de provas de que não foi plantado em áreas recém-desmatadas. E os cafeicultores brasileiros estão correndo para se adaptar, em meio a dúvidas sobre como cumprir a norma e expectativas sobre o impacto no mercado do grão.
A exigência faz parte do novo regulamento antidesmatamento do bloco (EUDR na sigla em inglês), que também valerá para cacau, soja, borracha, óleo de palma, madeira, gado e carvão, e produtos derivados como couro e chocolate.
Os cafeicultores têm todo interesse em seguir exportando para a UE sem sobressaltos. De janeiro a julho, o bloco foi o destino de 47,3% do café brasileiro exportado, e o apetite europeu pelo grão do Brasil está aumentando – o volume foi 64,9% maior do que no mesmo período no ano passado.
A Alemanha, que desde o início de 2023 tem uma lei própria sobre cadeia de suprimentos , foi o destino de 14,3% do café brasileiro exportado no mesmo período, 77% a mais do que nos mesmos meses do ano anterior, e se aproxima do líder, os Estados Unidos, destino de 16% dos grãos.
O Itamaraty tem promovido reuniões com representantes dos setores afetados, estados e ministérios, articuladas pelo embaixador Fernando Pimentel. O encontro mais recente ocorreu em julho, e coletou críticas e incertezas sobre a norma.
De forma resumida, o café precisará vir de fazendas georeferenciadas que não foram desmatadas após 31 de dezembro de 2020, de acordo com checagem feita por imagens de satélite. O setor avalia que a implementação não está clara, e questiona por exemplo como serão solucionadas divergências sobre a interpretação das imagens.
Mas nem tudo são reclamações. Cafeicultores avaliam que podem acabar expandindo sua participação no mercado europeu como resultado da norma, já que o Brasil teria um arcabouço técnico e normativo mais avançado do que outros países exportadores e estaria em melhores condições de cumprir as exigências. Em 2020, o Brasil foi a principal origem do café comprado na UE, seguido por Vietnã, Honduras e Uganda.
A DW conversou com dois cafeicultores brasileiros e uma entidade do setor sobre como eles estão se preparando para a EUDR e os problemas pendentes.
“Teremos certeza só quando chegar o primeiro contêiner”
Marcelo Urtado, proprietário da Fazenda Três Meninas, em Monte Carmelo (MG), cultiva 40 hectares de café arábica, e exporta cerca de 35% do que produz para o bloco europeu.
Ele vem atuando em diferentes frentes para cumprir a EUDR. Uma delas foi solicitar a um dos certificadores internacionais que auditam sua fazenda, a Rainforest Alliance, que incluísse na análise as novas exigências feitas pelo bloco. A iniciativa deu certo, e a certificadora verificou e informou os produtores de um grupo da sua cooperativa, a Monteccer, que eles atendiam ao regulamento.
Urtado também incluiu o georeferenciamento de sua fazenda em uma plataforma europeia que faz a intermediação entre cafeicultores e torrefadoras e confere se o café vem de área não desmatada, a Algrano. Ele já havia contratado um agrimensor para coletar os dados, e pediu que ele os entregasse também em formato compatível com a plataforma.
Tanto o aval da Rainforest como o da Algrano são indicativos de que sua fazenda passa no crivo da EUDR. Mas o que vai contar, no final, é a autoridade alfandegária do país da UE que receber o café importado. “Se estará de acordo quando chegar o primeiro contêiner… Acho que todo mundo ainda vai aprender”, diz.
Ele cita algumas dúvidas sobre a normativa. Há dois anos, a cada 11 ruas de cafezeiros, ele arrancou uma para plantar no lugar árvores que atraem inimigos naturais de pragas. O que acontecerá se, no futuro, ele decidir retirar essas árvores e voltar a plantar café no lugar? “Em 2020 era só café, em 2022 plantei essas árvores. Posso ou não retirá-las? Se me penalizarem, isso pode desincentivar o plantio de mais árvores no meio da lavoura”, diz.
Outra dúvida é sobre quais satélites serão aceitos. A UE indicou que aceitará imagens de sistemas variados, mas a autoridade alfandegária não tem a obrigação de fazê-lo. “E se disserem que precisarei de imagens de um satélite específico, que custa caro?”, questiona.
Urtado pondera ainda que sua fazenda é um caso mais simples, pois não tem bordas onde há dúvidas sobre áreas desmatadas, mas que outros cafeicultores podem não ter a mesma sorte.
Ele planeja expandir o seu cafezal e diz que a EUDR já influencia a decisão sobre onde comprar ou arrendar terras. “Quero crescer, e a primeira coisa que faço é olhar no Google Earth em 2020. Se tinha mata e não tem mais, já descarto.”
“Oportunidade para o Brasil aumentar sua fatia no café mundial”
Cafeicultor do cerrado mineiro, Fernando Beloni tem as fazendas Santa Cruz, em Patrocínio, e Horizontina, em Coromandel, que somam 370 hectares de café arábica. Seus grãos são comercializados por uma cooperativa, a Expocacer – hoje presidida por ele – que exporta cerca de 35% da produção de seus cooperados para a UE.
Ele afirma que ainda há muitas dúvidas sobre a EUDR, mas avalia que o regulamento pode, no final, ser uma vantagem para o café brasileiro. “Há risco de alguns países [exportadores] não estarem preparados para cumprir a norma à risca, como alguns na África e na América Central. O Brasil é um dos mais organizados e está razoavelmente bem preparado”, diz.
“Alguns desses países não conseguirão enviar café para Europa e terão que mandar para outros lados. Pode ser uma oportunidade comercial para o Brasil aumentar ainda mais a sua fatia de representatividade no café mundial”, afirma.
Para cumprir a EUDR, ele diz que a cooperativa assumiu a frente dos esforços, já possui o georeferenciamento da propriedade de todos os cooperados e exportará em setembro um primeiro lote de café para a UE já de acordo com a normativa
“Na média, os produtores sabem que a norma entrará em vigor, mas não estão muito por dentro do que precisam fazer para atender. Mas as cooperativas e as tradings estão correndo atrás”, diz.
Esse primeiro lote que será exportado pela Expocacer segundo as regras da EUDR utilizará uma plataforma desenvolvida pela Serasa Experian que compara a geolocalização das fazendas com dados de desmatamento.
A plataforma emite um relatório de rastreabilidade com o nome do produtor, a fazenda de origem, o lote do produto e os polígonos da geolocalização, além da indicação de que está cumprindo a EUDR. Esse relatório então é enviado para o exterior junto com o café e o boletim de embarque, emitido pela empresa de navegação que recebe a carga.
Quais são as reclamações do setor
Uma das entidades que participa das reuniões organizadas pelo Itamaraty sobre a EUDR é o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé). Marcos Matos, diretor-geral da organização, afirma que o setor entende que “as formas de fazer comércio no mundo estão mudando”, mas avalia que ainda faltam informações cruciais sobre a implementação da norma.
“Fizemos um evento grande na missão diplomática do Brasil em Bruxelas em abril, a UE estava presente e disse que em maio publicaria as perguntas e respostas [sobre a EUDR] e em julho o guia de implementação. Isso não aconteceu, foi postergado para agosto e setembro, e não sabemos se isso vai acontecer no prazo”, diz.
Ele afirma também que o sistema digitalizado da UE no qual os importadores de café do bloco deverão inserir os dados referentes à devida diligência só entrará no ar em dezembro e “tem várias limitações”.
Matos aponta, por exemplo, que mapas de desmatamento gerado por inteligência artificial, como um desenvolvido pelo Joint Research Center da UE, “não distingue bem as áreas plantadas de café” e sobrepõe cafezais estabelecidos há mais de 15 anos em Minas Gerais e no Espírito Santo a mapas de cobertura florestal.
“Se a autoridade competente dos países usar esse mapa para checagem e verificação, vai dar falso positivo e indicar desmatamento onde não tem, porque onde indica floresta é café, não conseguiu distinguir”, diz.
O Cecafé defende que a UE não aplique punições relativas à EUDR pelo prazo de três anos, para que o processo de implementação seja “harmonioso”, e pede maiores esclarecimentos sobre como serão resolvidas as divergências sobre se a área foi desmatada recentemente ou não.
“A cadeia é complexa, e toda tecnologia tem limitações. Entendemos que as divergências devem ser tratadas entre pesquisadores e governos, para tirar o risco da falta de precisão das costas das empresas”, afirma.
Além das preocupações, ele pondera que a EUDR é uma oportunidade “para mostrar o nível de preservação ambiental e a transparência de nossa fiscalização”. “Há sustentabilidade no Brasil, e isso nos coloca em condições de atender o mercado europeu. O importador sabe disso e vem em cima do café brasileiro”.
A DW solicitou um posicionamento à Delegação da União Europeia no Brasil sobre as críticas feitas pela Cecafé, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.
Fonte: dw.com