Por que PEC das Praias vai na contramão da crise climática

Por que PEC das Praias vai na contramão da crise climática
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Mudança constitucional pode incentivar especulação imobiliária à beira-mar e aumentar a ameaça aos ecossistemas costeiros, fundamentais para prevenir erosão das praias e inundação das cidades litorâneas.

PEC das Praias tramitou por 11 anos até ser aprovada na Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2022

Em 2021, a professora aposentada Clara Araújo, de 65 anos, viveu “noites de terror” na sua casa à beira da praia do Morro das Pedras, em Florianópolis (SC). Uma combinação de ciclone extratropical e maré alta fez o mar avançar sobre as propriedades da região, destruindo decks, calçadas, piscinas e ameaçando a estrutura das residências.

“Meus vizinhos saíram de casa, mas eu fiquei. De madrugada, quando eu ia ver como estava a situação, precisava usar um guarda-chuva para me proteger da água do mar”, relembra Araújo.

É nesse contexto de aquecimento global, aumento do nível do mar, erosão de praias, inundação de cidades à beira-mar e perda de biodiversidade no litoral brasileiro que está sendo discutida a PEC das Praias. A proposta é transferir os terrenos de marinha da União para estados e municípios e, de forma obrigatório e por meio de pagamento, para proprietários particulares que já ocupam essas áreas.

Os terrenos de marinha são uma faixa de 33 metros ao longo do litoral e dos rios e lagoas influenciados pelas marés. São demarcados a partir da Linha de Preamar, que foi delimitada pela média das marés altas no ano de 1831. Os cidadãos podem ter residências ou empreendimentos nesses locais com base em dois instrumentos: inscrição de ocupação e aforamento.

“A PEC tira do Estado brasileiro a possibilidade de fazer a gestão dessas áreas vulneráveis. Está na hora de o Brasil assumir essas áreas como muito importantes para combater a erosão e inundação e para fazer com que sejam uma proteção da linha da costa, da zona costeira, das cidades e das pessoas”, avaliou a coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marinez Eymael Garcia Scherer.

Um estudo do MapBiomas mostrou que, entre 1985 e 2022, o espaço de praias, dunas e areais diminuiu 15% no Brasil – em Santa Catarina, a queda foi de 21,5%. Clara Araújo viu essa mudança no Morro das Pedras, onde mora há 42 anos. Ela observou dunas e vegetação serem levadas pelo mar.

Por causa das fortes erosões dos últimos anos, a prefeitura foi obrigada pela Justiça a fazer uma obra emergencial para proteger as residências, construindo uma barreira com toras de eucaliptos e sacos de areia. A professora aposentada não esperou qualquer mudança na legislação. “Acabei de vender a casa. A manutenção estava muito alta”, contou.

A PEC é boa para os proprietários?

A PEC das Praias tramitou por 11 anos até ser aprovada na Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2022. Não chamou muita atenção da opinião pública até a realização de uma audiência no Senado, no fim de maio, e de uma discussão nas redes sociais entre a atriz Luana Piovani, contrária à nova lei, e o jogador Neymar, a favor da medida.

O senador Flávio Bolsonaro, relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), deu seu voto favorável à norma. “A proposta apresenta critérios claros sobre a propriedade desses bens, conferindo segurança jurídica às partes envolvidas”, escreveu em seu voto.

O advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Terrenos de Marinha, Nabih Henrique Chraim, ressalta que a PEC não altera a lei ambiental e nem muda a ocupação do solo. “No entanto, no texto atual, a PEC é ruim para os particulares. Porque ela trata de uma transferência onerosa, ou seja, tem que ser paga em até dois anos, sem opção de escolha para o cidadão”, afirmou.

Atualmente, há dois instrumentos jurídicos para se ter imóveis em terrenos de marinha. O primeiro é a inscrição de ocupação, que reconhece o aproveitamento da área, mas não gera um direito real sobre a propriedade.

O segundo é o aforamento, que garante os direitos de propriedade. O interessado paga 83% do valor da área, enquanto a União permanece com 17% do domínio útil. “Mas mesmo esses 17% podem ser adquiridos através do que é chamado de remição de foro”, explicou o advogado. Na avaliação do especialista, a PEC não inova tanto porque o aforamento é muito semelhante à ideia apresentada pelos legisladores.

Nos dois casos também há taxas anuais: 2% do valor do terreno na inscrição de ocupação e 0,6% no aforamento. Ao venderem os terrenos, os proprietários precisam pagar uma taxa de 5%, chamada de laudêmio. A PEC acaba com essas taxas. Os proprietários passariam então a pagar só o IPTU.

O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos estima haver 2,9 milhões de imóveis em terrenos de marinha, mas apenas 565 mil cadastrados – com arrecadação de R$ 1,1 bilhão em taxas em 2023. De acordo a pasta, a PEC impactaria diretamente na proteção das áreas costeiras e traria riscos como especulação imobiliária, impactos ambientais descontrolados e insegurança jurídica.

Na audiência do Senado, a representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, Ana Ilda Pavão, disse que as comunidades tradicionais também podem sair perdendo. Argumentou que elas já sofrem com o assoreamento, desmatamento e alagamentos. “O teor dessa PEC, no fundo, é a urbanização das orlas, são os grandes empreendimentos. Quem vai lucrar? Não somos nós. Nós só vamos perder. Essa PEC precisa ser revista. Muito tem se falado aqui, mas se esqueceram de falar da vida”, opinou.

Florianópolis e a emergência climática

Para Scherer, que também é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a PEC favorece a ocupação dos terrenos de marinha, enquanto a discussão deveria focar em uma boa gestão das áreas, incluindo a retirada controlada em certos casos. “É a ideia de pouco a pouco não deixar mais ocupar as áreas vulneráveis. Porque quanto mais ocupadas, mais as pessoas e a infraestrutura vão sofrer impactos. E acabamos acionando Defesa Civil, estado de emergência e gastando muitos recursos gerenciando o problema e não o planejamento”, afirmou.

Florianópolis é um exemplo da falta de planejamento e de como a situação pode piorar, opinou Scherer. A erosão tem diminuído a faixa de areia e destruído propriedades em diversos pontos. As principais medidas adotadas para enfrentar o problema foram três engordamentos de praias, em Canasvieiras, Ingleses e Jurerê, e duas barreiras de proteção, em Armação e no Morro das Pedras. O investimento foi próximo de R$ 100 milhões, de acordo com a professora.

“Muitas vezes foram ocupadas áreas de dunas frontais, com vegetação. Se você olhar, a prefeitura teve que colocar recursos em áreas que foram ocupadas até a primeira linha. São locais em que a praia, um ambiente muito vivo, não teve espaço para se recuperar”, explicou Scherer. De acordo com a pesquisadora, algumas ocupações são históricas, mas podem sofrer processos erosivos cada vez mais fortes. “Não há uma visão de cidade, e não é só Florianópolis, com essa lente de emergência climática que estamos vivendo”.

O prefeito de Florianópolis, Topazio Neto, defendeu a PEC na audiência no Senado. A DW questionou se não seria mais lógico trabalhar com a retirada de algumas estruturas da orla para combater a erosão. “Eu acho que sim, mas esse é outro tema”, argumentou. “A PEC trata da regularização da propriedade. Se eu moro na beira do mar, por exemplo, e acho que a maré vai subir e vai comer um pedaço do meu terreno, talvez eu não tenha interesse em comprar aquele pedaço do terreno de marinha”.

Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos estima haver 2,9 milhões de imóveis em terrenos de marinha, mas apenas 565 mil cadastrados 

Até por isso Topazio Neto acha que a compra dos terrenos de marinha deveriam ser uma opção e não uma obrigação. “A grande vantagem para Florianópolis, efetivamente, é regularizar e identificar todas as propriedades que têm uma parte de terreno de marinha. Porque isso hoje, quando você quer vender ou construir, é sempre uma dificuldade maior para o proprietário porque não tem isso na escritura dele e registro em cartório”.

A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) estima haver 30 mil unidades em terrenos de marinha na capital catarinense, a grande maioria não demarcada.

O prefeito também criticou a falta de investimentos do governo federal. “A União não fez nenhum investimento ao longo dos anos para preservar os terrenos dela, digamos assim, que foram erodidos pelo mar. Temos diversos problemas e nunca tivemos uma obra pública federal para tentar preservar suas terras.”

Acesso às praias e privatização

Uma das críticas em relação à PEC é que os proprietários dos terrenos de marinha poderiam não dar acesso às praias. Atualmente a prática é proibida, mas muitas vezes é preciso ação judicial para garantir esse direito. Há casos também de empreendimentos em que o acesso à orla só é permitido mediante fiscalização de seguranças privados. Após a repercussão, Flávio Bolsonaro disse que vai adicionar no texto o livre acesso à praia e ao mar.

A possibilidade de privatização também sacudiu as redes sociais. Pelo menos de forma explícita, não há nada na PEC que possa ser interpretado dessa forma. Marinez Scherer, no entanto, chama a atenção para o Projeto de Lei 4444, de 2021, que criaria uma Zona Especial de Uso Turístico. A ideia é que os municípios possam destinar 10% das orlas e praias marítimas, estuarinas, lacustres e fluviais para os projetos com “restrição de acesso a pessoas não autorizadas”. “Este projeto fala em privatização com todas as letras”, avaliou Scherer. “É um pacote”.

Fonte:     dw.com


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