A cada quinze minutos, em frente ao clube esportivo Geraldo Santana, no bairro Santo Antônio, em Porto Alegre, escuta-se uma voz gritar: “acolhimento, acolhimento”. Então, voluntários vão até algum veículo que para em frente ao estabelecimento e recebem pessoas que tiveram de deixar suas casas em razão das enchentes que assolam o Rio Grande do Sul desde o final do mês passado.
Algumas pessoas chegam com dificuldade de mobilidade e os voluntários providenciam cadeira de rodas, oferecem o braço como apoio e ajudam a carregar eventuais sacolas – mas muitos chegam apenas com a roupa do corpo.
O espaço funciona como centro de triagem para encaminhamento da população a abrigos emergenciais. As enchentes que atingem o estado já deixaram mais de 100 mortos, de acordo com o último levantamento da Defesa Civil desta quarta-feira (08/05). A tragédia afetou diretamente mais de 1,4 milhão de pessoas. Além disso, há 128 desaparecidos, quase 400 feridos e mais de 200 mil pessoas tiveram que deixar suas casas. Destes últimos, cerca de 66 mil são considerados desabrigados – precisaram se dirigir a abrigos do poder público ou de iniciativas voluntárias por não terem a quem recorrer.
Do total de 497 municípios do estado, 414 foram afetados pelas enchentes – cerca de 83% – e 336 estão em situação de calamidade pública. Enquanto a água baixa em regiões como o Vale do Taquari e o Vale do Caí, a situação ainda é crítica em Porto Alegre, na região metropolitana da capital e em cidades vizinhas, e se agrava no sul do Estado. O fluxo de pessoas em deslocamento e buscando abrigo é constante. “Estimamos que cerca de 6 mil pessoas tenham passado em 24 horas no centro de triagem neste local, aberto na segunda-feira (06/05)”, aponta Larissa Nunes Carlosso, coordenadora de comunicação da secretaria de Obras da prefeitura de Porto Alegre e uma das coordenadoras do local.
Ao chegarem no centro de triagem, as pessoas têm atendidas primeiro as necessidades básicas: água, comida, a possibilidade de utilizar produtos de higiene e de trocar de roupa. De acordo com a coordenadora da prefeitura, são cerca de 400 voluntários auxiliando na triagem, incluindo diversos profissionais da área da saúde.
“É um primeiro acolhimento. Algumas pessoas chegam machucadas pela situação em que foram resgatadas, algumas estão desidratadas por terem ficado dias sem água. Também oferecemos tomadas e carregadores, e aqueles que conseguiram trazer seus celulares conseguem contatar familiares”.
A partir do centro de triagem, muitas pessoas recebem carona voluntária para casa de amigos ou parentes. As que não têm onde ficar são encaminhadas para algum dos mais de 60 abrigos cadastrados na prefeitura de Porto Alegre. O SOS Rio Grande do Sul lista 192 abrigos em outras regiões do estado.
“Ainda temos algumas questões de resgate e acesso, mas cada vez menos. Também é importante que as pessoas atendam aos pedidos dos agentes públicos lá na ponta, quando for dito que precisam sair, que a água vai subir”, frisa a tenente da Defensoria Civil do Estado Sabrina Ribas.
As pessoas são levadas à triagem e aos abrigos de diferentes formas: por viaturas da Brigada Militar (o equivalente à Polícia Militar no RS) e da Defensoria Civil, por voluntários e também por algumas linhas inoperantes de ônibus da cidade. Fixada nos portões do clube, está uma lista com as necessidades atualizadas do centro.
“O que mais precisamos é água potável, é o principal”, diz a coordenadora. Estima-se que 85% de Porto Alegre esteja sem água potável. A situação é ainda mais grave com o aeroporto Salgado Filho e a rodoviária inoperantes.
Uma sólida estrutura voluntária
O salão paroquial da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, transformou-se desde domingo em uma das dezenas de abrigos de iniciativas independentes que não estão cadastrados na prefeitura. “Quando o padre Bruno deu o alvará, levantamos a estrutura em duas horas: com doações, colchões, e roupas separadas por tamanho. Esperamos uma hora e aí as pessoas já começaram a chegar”, conta o coordenador do local, Ricardo Miranda.
O abrigo, já lotado, acolhe cerca de 80 pessoas e conta com aproximadamente 40 voluntários ativos a cada turno, dos cerca de 500 registrados no grupo que organiza o espaço. Entre os voluntários estão profissionais de diversas áreas que contribuem com suas expertises, como psicólogos, médicos, psiquiatras, enfermeiros, educadores físicos, fisioterapeutas, chefes de cozinha, etc.
No interior do salão, além de uma estrutura voltada ao atendimento de saúde, há um espaço equipado com brinquedos e uma mesa com livros e bebidas.
“Estamos bem amparados, com água, cozinha equipada, remédios, todos os suprimentos e recursos necessários. Estamos conseguindo atender até pessoas com deficiências físicas. Mas tem muitos abrigos que estão com falta de muitas coisas, então as doações que chegam são encaminhadas adiante”, explica Ricardo.
Segundo ele, algumas pessoas vão embora no mesmo dia em que chegam, mas muitas não têm previsão de saída. “Temos estoque de alimentos para dois meses, além de três semanas de planilhas de voluntários já organizadas”, menciona, prevendo que o trabalho voluntário no local possa estar longe do fim. A previsão é que o lago Guaíba demora até 30 dias para voltar ao nível normal.
O drama de deixar o lar
“Quando a água começou a chegar perto do segundo piso foi que eu vi que a coisa estava feia e a gente precisava sair”, conta Jacqueline Botelho Chaves, de 41 anos, moradora de Ilha Grande dos Marinheiros, parte do bairro Arquipélago, composto de diversas ilhas sobre o lago Guaíba. Jacqueline relata que enchentes são corriqueiras em seu bairro e que, mesmo com avisos de evacuação, ela não achou que precisaria deixar a casa. “Moro há 35 anos na ilha e todo ano tem enchente. A do ano passado e a de 2015 foram horríveis, perdemos coisas, mas mesmo com avisos não saímos por causa do segundo piso. Agora foi diferente”.
Ela está desde sexta-feira (03/05) à noite com o marido e o filho de 16 anos no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (CETE), onde opera um dos maiores abrigos cadastrados na prefeitura, acolhendo mais de 400 pessoas.
Na madrugada daquela sexta-feria, a situação se tornou crítica para a família. “Às 2h da manhã comecei a ligar para bombeiros, para a Defesa Civil, mas estava tudo ocupado. Aí fui para a janela e comecei a gritar por socorro”.
Jacqueline conta que um barco de moradores das ilhas veio resgatar seu vizinho e aproveitou para levar a sua família, em torno das 9h da manhã. “A sorte é que, além do barco, meu vizinho tinha também um caiaque. Só conseguimos sair porque, com o caiaque, deu para passar por baixo da garagem”.
A família conseguiu levar consigo apenas os quatro cachorros, os celulares e a roupa do corpo. “Estamos muito aliviados que nossos cachorros estão aqui no abrigo também e podemos cuidar deles”.
Uma longa jornada até o acolhimento
Do resgate nas águas até chegar ao abrigo na área central da capital, a família ainda teve de enfrentar uma saga. “O barco nos deixou na BR [rodovia] e tentamos ir para [a cidade de] Guaíba, mas o caminho estava bloqueado. A Brigada Militar pegava quem tinha sido salvo por moradores e levava para os abrigos, mas, todos que passavam por nós, já estavam lotados”, conta Jacqueline. Da manhã até à noite, os três caminharam molhados, no frio, sem comida e sem água.
Agora, acolhida no abrigo do CETE, a família não tem previsão de sair das instalações. Iago Chaves, o filho de Jacqueline, desabafa: “não adianta irmos para outro lugar, as pessoas não têm água, não tem luz, aqui pelo menos tem o básico. Ir para algum parente agora seria mais um fardo”.
Embora morem próximas na Ilha dos Marinheiros, Naira Vieira Maia, 60 anos, e Jacqueline só se conheceram no abrigo do CETE. “Já adotamos ela na família”, brinca Jacqueline. “Perdi tudo, minha casa se foi com o rio, já era”, conta Naira, que já havia sido gravemente afetada pelas cheias de 2023 e teve de passar um período morando em aluguel social.
Naira relata que passou por muita agonia até chegar no abrigo e conseguir se comunicar com familiares. “Ficamos dias sem energia, meus filhos estavam apavorados, chorando, achando que eu e meu marido tínhamos morrido. Meu filho está em outro abrigo, minha filha na casa de um parente, todos fomos atingidos”.
Como ela, muitas famílias não têm nenhum recurso para se reerguer depois da tragédia. “Eu não tenho nadinha, se não tiver ajuda, não tenho onde morar”, expõe a empregada doméstica. “Até a casa dos meus patrões foi totalmente inundada, nem sei onde vou trabalhar”.
Apoio à saúde física e à emocional
O marido de Naira Maia tem diabetes e a doença foi uma das primeiras urgências a serem atendidas quando o casal chegou ao abrigo. “Ele cortou o pé com um caco de vidro. O corte não foi grande, mas por causa da diabetes a ferida piorou muito, ficamos assustados”, relata.
A doença, aliás, tem sido uma grande questão para muitos dos desabrigados, relata a médica voluntária Anna Alice Ritter Madruga. “O pior caso que eu peguei foi de uma senhora diabética que estava com a glicose muito alta, podia entrar em coma diabético, mas conseguimos insulina”.
A profissional relata que boa parte do trabalho nos centros de acolhimento é voltado à separação e à organização de remédios, já que a maior parte dos que perderam suas casas não consegui resgatar nem suas medicações. “Quando as pessoas chegam, fazemos uma ficha médica, perguntamos se tem algum problema de saúde e o último horário que tomou sua medicação, questões básicas. Se a pessoa está se sentindo mal, mandamos para o posto que montamos no abrigo. Em casos extremos, ligamos para o SAMU para que a pessoa seja levada ao hospital”, explica.
Pelo contato com a água insalubre, a maior preocupação são doenças como leptospirose, hepatite A, infecções de pele e gastrointestinais, rotavírus, entre outras, explica a médica, que prestou assistência no abrigo da Universidade Luterana do Brasil, em Canoas, cidade vizinha a Porto Alegre.
Além disso, a médica alerta para uma série de doenças epidemiológicas e respiratórias que podem escalonar nos abrigos pelo grande número de pessoas compartilhando o mesmo espaço. “Até a tuberculose é uma preocupação no longo prazo. Também zoonoses podem aparecer, por terem muitos cachorros e gatos misturados com as pessoas”.
A voluntária ressalta que o maior desafio é a logística e sistematização, já que não faltam profissionais disponíveis e os remédios estão sendo supridos. “Uma solução que encontramos onde atuei foi deixar a ficha médica com os pacientes, pois elas estavam sendo perdidas em meio a tantas coisas para organizar”.
Além do cuidado físico e a atenção a aspectos materiais, especialistas destacam a importância da saúde mental neste momento crítico. “O que está acontecendo invoca muitas questões traumáticas para pessoas que estão chegando aqui e tendo que lidar com tantas emoções”, explica a psicóloga Larissa Bastiani Roggia, voluntária no abrigo da paróquia Auxiliadora.
“Fazemos a escuta e acolhimento de quem está chegando. Muitas pessoas que não tinham necessidades anteriores de tratamento de saúde mental estão tendo agora. Estão em uma situação de vulnerabilidade total e de grande incerteza e falta de perspectiva”, expõe a psicóloga.
De acordo com a profissional, na hora do resgate, muitas famílias foram separadas e acabaram em abrigos diferentes. “Estamos buscando proporcionar esse encontro para que as famílias possam ficar juntas”, destaca.
A profissional aponta que, no entanto, o aspecto emocional frequentemente é negligenciado. “Precisamos ter esse olhar para o interior, porque muito da possibilidade de reconstruir a vida vem desse sentimento de esperança, de poder sentir que tem força. Se não for cuidado, o trauma pode ter sequelas na saúde mental muito graves, como quadros ansiosos, depressivos, e até de suicídio”.
Fonte: dw.com